COLUNA

Francisca Medeiros

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Sobre churrasco, pés de galinha, negócios e cultura

Foto: reprodução

Carne boa vai pra fora, fica aqui pros brasileiros a de segunda, aquela mais ou menos. Quem já não ouviu esta afirmação? Eu já e muitas vezes. Mas será isso verdade? Melhor esclarecer logo que não, não é verdade. O que conta, antes de tudo, é o gosto do consumidor que vai às compras. E quando se vê itens que fazem sucesso lá fora, percebe-se que a cultura, os hábitos – e, claro, a renda – influenciam a lista de compras, tanto lá quanto cá. E quem vende se organiza para atender o gosto do freguês.

Por aqui, não há escassez de proteína animal, que é produzida em volumes suficientes para o mercado interno e também para vender para fora. O que mais dificulta o acesso à carne é a renda familiar baixa, associada aos ciclos de preços altos do produto. E como maior exportador de carne bovina do mundo, o Brasil precisa conhecer e se adaptar às preferências comerciais dos 159 países com quem faz negócios.

De começo, vale deixar claro que as carnes brasileiras têm qualidade sanitária, de higiene, e há fiscalização oficial para atestar isso. E como pesa, cada vez mais, a percepção pública da forma como são produzidas, produtores e indústrias precisam mostrar claramente o que fazem também em relação ao bem estar animal, à proteção ao meio ambiente, ESG, a sustentabilidade do sistema.

Além da diferença entre as raças e formas de produção, os cortes e partes dos animais apreciados entre os compradores podem variar muito em relação aos brasileiros. A quantidade e nomes dos cortes bovinos não têm, necessariamente, correspondência entre os países. Aqui há mais cortes específicos obtidos manualmente do que nos Estados Unidos que, por usarem mais máquinas, são mais genéricos.

Em 2023, o Brasil exportou, no total, 2,53 milhões de toneladas de carne bovina in natura e processada. A Conab estima que neste ano serão produzidas 10 milhões de toneladas a mais, das quais 6,6 milhões ficarão no mercado interno e 3,5 milhões serão destinadas ao externo. O Ministério da Agricultura lista entre os principais compradores a China, Estados Unidos, Chile, Hong Kong e Emirados Árabes Unidos.

Conforme a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (ABIEC), quase 82% dos embarques de carne bovina in natura tiveram no ano passado como destino 124 países (China respondeu por 64,7%, seguida de Hong Kong, com 11,8%). Já a carne industrializada foi para 115 países (EUA no topo, com 58,1%, seguidos do Reino Unido, com 19,5%, e União Europeia, com 11,8%).

Mas os contêineres brasileiros rumo ao exterior não levam apenas filés, peitos e pernis. Há também pés de frango, pescoços de peru e de pato, bochecha de porco, tripas de boi, miúdos em geral. Há muita encomenda de fígado, rins, coração, língua. E de peças como o ligamento cervical, aorta, tendão, omaso (parte do estômago), medula espinhal, útero e testículos.

Em 2023 os miúdos foram vendidos para 106 países, entre os quais Hong Kong, que ficou com quase 70% do volume entregue, seguido da Costa do Marfim (10,8%), Gana (7,8%) e Mianmar (6,2%). Hong Kong funciona como um entreposto, reexportando para outros países da Ásia, como Vietnã, Taiwan e Coreia do Sul, onde muitos destes itens são ingredientes nobres. A partir de março deste ano o Egito anunciou a abertura para o mercado brasileiro de carnes e também miúdos de caprinos e ovinos.

Um exemplo da diferença de tratamento no Brasil e lá fora é com os pés de galinha. Aqui eles são pouco valorizados, a não ser quando entram numa canja afetiva. Mas na China, Vietnã, Indonésia e Malásia, por exemplo, são vendidos em máquinas e consumidos como petiscos, algo parecido com o papel da nossa pipoca.

A demanda da China chega a elevar os preços dos pés acima do peito de frango congelado. Nas granjas brasileiras que criam aves para exportação, o cuidado é grande para evitar as calosidades que depreciam uma mercadoria de alto valor.

Eles são populares também nas Filipinas, onde, pelo formato, são chamados ‘adidas’, numa alusão à marca alemã de roupas e calçados esportivos. Hong Kong já foi o maior entreposto de embarque de pés de frango de mais de 30 países. Lá os pés de pato também são apreciados. Na Coreia, os pés de galinha são servidos grelhados ou fritos com molho de pimenta. Na Tailândia, é um prato festivo.

Também são preparados com diferentes receitas na Europa Oriental (Rússia, Ucrânia, Moldávia) e na Jamaica. Na África do Sul são chamados ‘walkie talkies’, onde se consome também a cabeça, intestino, corações e miúdos de frango. No México, as ‘patitas’ encorpam ensopados e sopas.

No início do ano passado, em meio a uma crise econômica e inflação em alta, o Instituto Nacional de Nutrição egípcio pediu à população que passasse a consumir mais os pés de galinha. Por serem nutritivos e ricos em colágeno, eles vêm ganhando recentemente um novo status no segmento da chamada alimentação saudável em todo o mundo. Um outro item, a orelha suína, que aqui no Brasil entra sem questionamentos somente na feijoada, também é muito valorizada em países asiáticos, servida como prato de entrada, frita, crocante ou em sopas.

Mais um exemplo, agora da carne de cavalo, de como é a cultura que primeiro norteia o consumo e os negócios. O Brasil não consome, mas abate e vende essa carne para o exterior. E tudo dentro da lei. Há cinco matadouros de cavalo com fiscalização federal no país – três na Bahia, um em Minas e outro no Rio Grande do Sul.

A Portaria 365/2021 do Mapa, que regulamenta o manejo pré-abate e abate humanitário de animais, classifica, inclusive, os cavalos como ‘animais de açougue’. E, ao contrário do que muitos possam imaginar, a venda de carne de cavalo é permitida no Brasil. O que não pode é enganar, dizer que é de outro animal.

Mas como os brasileiros não consomem, toda a produção é exportada. Entre os compradores, destaque para Hong Kong, China e Rússia. Itália, Bélgica e França também são grandes consumidores de carne de cavalo, normalmente na forma de embutidos, misturada à carne de porco e de outros tipos.

Por razões culturais, este mercado gera muitas controvérsias, tanto que na Câmara dos Deputados tramita o projeto de lei (PL 2387/22) de autoria do deputado Ney Leprevost (União-PR) que propõe proibir o abate de equídeos e equinos (jegues, cavalos e jumentos) para o comércio, consumo ou exportação. Em outra frente, a Ong Animal Equality lidera uma campanha internacional que pede o fim do abate de cavalos para consumo humano.

A renda é, sem dúvida, um obstáculo ou um estímulo para a exclusão ou incorporação de alguns alimentos no cotidiano das pessoas. Mas as questões culturais, religiosas e sociais também têm muito peso na alimentação e não podem ser desconsideradas. Elas têm o poder de condenar ou dar status premium a determinados produtos. Os gastrônomos, porém, têm uma explicação que considero valiosa. É que, tecnicamente, não existe carne de segunda, tudo é questão de saber como preparar cada corte e apreciá-lo ao seu gosto.

 

* Os textos das colunas e dos artigos são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião do eh fonte.

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