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Francisca Medeiros

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A muvuca que o cerrado precisa

Em extensão, o Cerrado é o segundo bioma do Brasil, só é menor que a Amazônia. Em biodiversidade, é de uma riqueza enorme, abriga mais de 6 mil espécies de árvores, 800 de aves, além de ser o berço das três maiores bacias hidrográficas da América do Sul. Talvez por não ter a paisagem exuberante da Amazônia, é um dos biomas mais ameaçados do mundo, tendo já perdido mais de 70% da cobertura original.

E há muitos desafios pela frente para estancar a degradação e restaurar parte do que se perdeu. Esta é a conclusão de um estudo de um grupo de pesquisadores da Unicamp e colaboradores. A pesquisa analisou dados de 82 áreas em restauração de cinco estados e do Distrito Federal, em propriedades particulares e em unidades de conservação. O resultado indicou que é preciso combinar diferentes técnicas porque, isoladamente, nenhuma delas é efetiva.

Este estudo, publicado na revista científica britânica Journal of Applied Ecology, considerou as técnicas passivas, quando se deixa a área alterada se regenerando naturalmente, e as ativas, que incluem semeadura, plantio de mudas de árvores e transplante de plantas, raízes e solo. Foram comparadas as áreas em restauração com as conservadas e vários problemas apareceram. 

De 712 espécies nativas do Cerrado, 47% delas não foram incluídas nos locais em restauração. E de 520 espécies encontradas nestas áreas, 70% não eram típicas do Cerrado. As espécies de outros biomas podem comprometer a estabilidade do ecossistema a longo prazo, explicou a professora Natashi Pilon, primeira autora da pesquisa, em reportagem publicada pela Agência Fapesp, que apoiou a pesquisa. 

A semeadura e o transplante mostraram melhores resultados, mas são técnicas que dependem de áreas conservadas para fornecer sementes, plantas e raízes. O ideal seria não abrir mão de nenhuma das espécies, sejam os capins nativos, ervas, subarbustos, arbustos, trepadeiras ou árvores. 

Tão importante ou até mais urgente que a restauração, são as políticas e estratégias que promovem a conservação, concluiu o estudo.

É claro que a restauração tem suas limitações técnicas. Mas como não dá para abrir mão de conservar e também de recuperar os estragos feitos, o estudo sinaliza que a lógica da natureza é um indicador do sucesso de qualquer medida. 

As espécies da flora do Cerrado são a melhor opção em projetos de recuperação ambiental no próprio bioma. Com raízes longas, elas buscam água a grandes profundidades e resistem melhor ao período da seca. O mesmo vale para o paisagismo urbano, na arborização de calçadas e de quintais, que andam tão desvitalizados e com pouca variedade de plantas. 

O menu que o Cerrado oferece é recheado. São ipês de tantas e belas cores, jacarandá, jambo, jequitibá, lixeira, jenipapo, pata-de-vaca, pimenta-de-macaco, sibipiruna, tarumã, aroeira, cumbaru, embaúba, entre muitas outras. 

No departamento das frutíferas, a mesma riqueza. Pequi, murici, bocaiúva, buriti, cajá-manga, guavira, gabiroba, jatobá, jenipapo, mangaba. Para cada uma se deve considerar o porte, o sistema radicular, as exigências de solo, calor e luminosidade.

Quero destacar hoje uma técnica que é do tipo ‘tudo junto e misturado’. A muvuca está sendo muito estudada e já é adotada em diferentes projetos de restauração da vegetação nativa em unidades de conservação e em propriedades privadas, no Cerrado e na Amazônia. É a semeadura direta que mais tenta se aproximar do que acontece na natureza. 

As sementes coletadas no próprio bioma são misturadas, enriquecidas com adubação verde e são lançadas, em grande concentração, ao solo preparado. A mistura tem espécies de gramíneas, árvores, arbustos e ervas que desempenham diferentes papéis, as pioneiras, secundárias e clímax. Em uma mesma área se distribui dezenas de variedades.

A muvuca, que em bantu significa aglomeração ruidosa de pessoas, envolve, de fato, muitos elos, uma rede de coletores, pesquisadores, ONGs, órgãos públicos e iniciativa privada.

No Cerrado, a técnica é usada em projetos na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, e na Bacia do Taquari, em Mato Grosso do Sul. O Projeto Restaura Cerrado, segundo o ICMbio, pretende restaurar 1,3 milhão de hectares somente em unidades de conservação. Um dos grupos envolvidos, a Rede de Sementes do Cerrado, trabalha com 84 espécies, uma riqueza de diversidade! 

Aqui em Mato Grosso, a Rede de Sementes do Xingu coleta, trata, armazena e comercializa espécies do Cerrado e da Amazônia. Como produtora de sementes nativas, é credenciada no Ministério da Agricultura. Dela participam indígenas, agricultores familiares e moradores de cidades nas bacias dos rios Xingu, Araguaia e Teles Pires, incluindo 11 assentamentos rurais e três Terras Indígenas. 

De coletores, são quase 650 pessoas, organizadas em 25 grupos distribuídos em 19 municípios. Eles atendem aos pedidos de proprietários rurais e empresas interessadas na restauração de áreas degradadas. Em 16 anos de atuação, a venda de sementes nativas já rendeu mais de R$ 6 milhões.

Em 2021 a ONU declarou esta como a década da Restauração dos Ecossistemas. E o Cerrado, como a savana mais biodiversa do mundo e que funciona como a caixa d’água do Brasil, merece mais atenção e ações efetivas de preservação. A bagunça organizada da muvuca é um trabalho formiguinha que inspira pela atuação em rede e pelo respeito ao conhecimento local tradicional, que não briga com as técnicas validadas pela ciência. 

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