Seis meses sem sextas-feiras
Pensem num casamento de 47 anos. Sim, esse tempo todo juntos. Depois apliquem essas décadas a um dos hábitos do casal, que é a saída noturna semanal. Aí chega-se às noites de sexta-feira reservadas para a ida aos bares, faça calor, chuva ou frio em Cuiabá. A quantidade de vezes é imensurável.
Mas agora que o companheiro de copo e de bar foi embora para o céu, como está uma noite de sexta para Sônia? Isso, eu mesma! Respondo que, mesmo lidando com palavras, não as encontro para descrever o vazio atual das minhas sextas-feiras. É doído isso, a saudade bate duro, e o escapismo impera.
Ontem, quarta-feira, fez seis meses que José Luiz, meu marido, partiu. Sábado é Finados. Entre quarta e sábado tem amanhã, sexta-feira. Mais uma nesses seis meses sem ele, meu par, meu parceiro de todas as horas em todos os dias, por anos.
Daí que a maioria das sextas (mas não só elas), nesse período sem José, foi insuportável, o que tornou a fuga da realidade inevitável. Fiquei dividida entre formas de distração e a companhia de parentes e amigos, tentando cuidar da dor da perda. Eles também estão doloridos por José.
De volta à nossa ida ao bar às sextas, justifico que isso ocorria não só por causa do chopp ou da cerveja. Claro que a bebida atraía diante do calor de Cuiabá, porém, para nós, o ambiente propiciava, sobretudo, a conversa do casal: coisas da família, balanço da semana, o planejamento dos próximos dias, o cardápio do almoço de domingo, as questões dos filhos, a situação financeira etc.
Esses assuntos cotidianos somente passavam para segundo plano quando, nessas ocasiões, surgia um amigo, uma amiga, um parente, ou mais de um, de forma casual ou combinada, para nos acompanhar à mesa do bar.
A terapeuta Beta Lotti ensina que “sempre que puder se reúna com pessoas que lembram como é bom viver, como é bom você fazer o que faz, como é bom ser você”. Ela pontua que “as pessoas certas têm o poder de nos carregar e, às vezes, tudo o que a gente precisa é de uma boa dose dessas companhias”.
Pois isso acontecia conosco num bar sexta à noite. José adorava conversar, ele era amigo dos meus amigos (sempre digo que alguns paparicavam mais ele que eu), o papo fluía sobre assuntos variados e, ao final, voltávamos revigorados para casa.
Entre os bares e botecos de Cuiabá que eu e José frequentamos nas últimas décadas não dá para lembrar todos, mas alguns deles estão ainda funcionando, como o Choppão e o Money Money, este no bairro em que moramos, o Boa Esperança.
No início do nosso casamento, nos anos 1970, ainda em Brasília, às sextas-feiras íamos ao Augustu’s (não existe mais), ao Beirute e ao Arabesque, na 108 Sul. Já recentemente, com a idade pesando e a Lei Seca em vigor, ficávamos no bairro mesmo e o sinônimo disso é Moinho Espetos.
Semanas atrás, retornando de um evento com amigos (sem eles não conseguiria enfrentar o luto), paramos no Choppão para tomar escaldado. Era uma quarta-feira, não sexta. De repente surge à minha frente Geraldo, o garçom que lá nos atendia.
Contei sobre a morte de José e aí ele entendeu por que estávamos sumidos do lugar. Geraldo se solidarizou comigo, e disse que ia avisar Alguines, garçom que, antes dele, nos servia no bar, um dos mais tradicionais de Cuiabá.
O mais bacana foi que, aos amigos que estavam comigo no Choppão, Geraldo rememorou nosso habitual pedido – primeiro, cada um bebia 3 chopps, depois, os dois dividiam 2 a 3 garrafas de cerveja, além da batata frita e um filé a palito, de carne ou peixe. Verdade. Achei legal a lembrança dele, me emocionei.
Falta rever Admilson, do Money; Kilal, do Habibe; Toninho, Baiano, Oliver, Fernando e Sandra, do Moinho, e outros donos de bar e garçons que vão voltando aos poucos para minha mente.
Ficamos amigos de todos, nos atenderam super bem, tinham paciência com José, chamavam carro de aplicativo para nós.
Em síntese, cuidavam dos ‘clientes idosos’ na noite de sexta-feira.
Para não nos identificarem como só ligados aos bares (né não, José?) segue uma listinha de outras coisas, entre tantas, dos nossos 47 anos de casados (o psicólogo e a jornalista), que estão guardadas com carinho, alegria e felicidade:
– Cuiabá, nossa origem. Brasília, onde nossos filhos nasceram. O pantanal e as cachoeiras da Chapada. O rasqueado, a polca paraguaia e a comida cuiabana. Os amigos. Almoço e jantar em casa. A família. Futebol, chopp e batata frita. Flamengo x Botafogo. Festas de santo, carnaval e shows de MPB. Cachorro da raça boxer. Muita informação por jornais, revistas, tevê e canais noticiosos. Um conectado à internet, outro absolutamente analógico.
Todavia, para realçar que a vida não segue sempre um compasso harmonioso, por mais que nos esforcemos nesse sentido, eu e José fomos impactados por uma tragédia. A morte do nosso filho Bruno, de forma inesperada, há 24 anos, nos deixou ‘sem chão’, nos desnorteou. Até hoje essa comoção paira entre nós.
Mas a união e a base emocional da família reconfigurada – José, eu e Bianca na terra, e Bruno no céu – nos ajudaram a continuar ano após ano. A fatalidade serviu para aprofundar laços emocionais com o decorrer do tempo, mas não para contemporizar ou abrandar a ausência do nosso filho.
Agora, a situação é de vazio em dobro. Não tenho, há seis meses, José ao meu lado. Bruno se foi há mais de duas décadas. Sinto muita, mas muita falta dos dois e de como era nossa família inteira de antes.
Na proximidade do Dia de Finados, sábado, reverencio hoje meu marido relembrando coisas nossas, como as incríveis noites de sexta-feira. Quanto ao meu filho, aquele que gerei e não sai um segundo do meu coração, gratidão e admiração eternas minha e de José.
São meus queridos, meus amores, que já se reencontraram certamente e estão juntos lá no céu me esperando. Creio e tenho fé nisso!
É impossível suplantar a dor causada pela saudade, mas eu e Bianca estamos tentando. Juntas.
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