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Lá se vai Patrícia Civelli, uma luz no resgate da memória do Marechal Rondon em Rondônia

 

Por Montezuma Cruz – Dos varadouros de Porto Velho

A memorialista e produtora de cinema Patrícia Pola Civelli, 73 anos, que inseriu seu nome na história cultural de Rondônia, morreu sábado (12/7) no Rio de Janeiro. Seu corpo foi velado e cremado no domingo (13), no Cemitério Catumbi. “Estou numa tristeza imensa. Em menos de três meses, perdi minha mãe biológica e agora, a Pat, uma segunda mãe”, disse a jornalista, pesquisadora e roteirista Zilda Raggio (ex- Globopar, Tv Globo, Rede Globo, Globo.com).

Nascida em São Paulo, Patrícia iria inteirar 74 anos em outubro deste ano. Teve um mal súbito na semana passada, foi internada em um hospital e não resistiu. De uma década para cá, ela vinha se dedicando a restaurar originais dos filmes feitos por seu pai, o diretor ítalo-brasileiro Mário Civelli, e cuidava dos arquivos de sua mãe, a jornalista Pola Wartuck, que foi crítica de cinema no jornal O Estado de S. Paulo.

Entre outras obras, ela deixa: produção e curadoria de nove nove mostras cine-foto-biográficas sobre Marechal Rondon: “Nosso Herói Rondon” (2002), Centro Cultural Casablanca (Rio) e Memorial dos Povos Indígenas (Brasília); “Um homem chamado Rondon” (2010), Arquivo Nacional e Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (Rio); Rondon – o Marechal da Paz (2011); Esporte, desenvolvimento e paz (2011) e “Missões de paz” (2013), Espaço Cultural Sergio Vieira de Mello/CCOPAB (Rio); exposição permanente Rondon, Marechal da Paz, montada no Memorial Rondon, em Porto Velho.(2015). Produziu o livro Rio da Dúvida, centenário de uma epopeia (2014), de Mário Cesar Cabral Marques, seu marido. E ambos se embrenharam por Espigão d’Oeste, a 541 Km de Porto Velho, para filmar Rio da Dúvida, de Joel Pizzini, que foi concluído pela Memória Civelli/Barra Filmes, em maio de 2023.

Em conversa pela internet e telefonemas com este repórter, ela lembrava constantemente o saudoso marido, Mário César Cabral Marques, falecido em março do ano passado. Eles viveram juntos 30 anos.

“Monte, eu me mudei para uma casa grande, tem lugar de sobra para guardar tudo o que é preciso, mas é difícil me acostumar a viver sem o Mário”, ela me disse. O marido dela foi cofundador do Memorial Rondon, em Porto Velho, onde estão expostas aproximadamente quatrocentas peças e documentos deixados pelo marechal.

Em 2017, Patrícia o acompanhou na comemoração dos cem anos de instalação do telégrafo na estação Santo Antônio do Rio Madeira. Com eles vieram duas senhoras idosas – Beatriz Amarante e Mari Cecília – sobrinhas de Rondon.

A saga de Rondon fora resgatada. Desde 2024, Patrícia colocava entre suas prioridades a gravação do audiovisual documental de longa-metragem: “Marechal Rondon e a história esquecida de Santo Antônio do Rio Madeira”, que fora contemplado em edital da Superintendência de Estado da Juventude, Cultura, Esporte e Lazer (Sejucel).

Pouco tempo depois do centenário do telégrafo, Mário César, acompanhado de Patrícia, filmou O Rio da Dúvida, uma cinebiografia que se revestiu em verdadeiro teste de sua competência profissional – aclamado e laureado em festivais internacionais.

Mário Civelli, pai de Patrícia, era amigo do marechal Cândido Rondon, que lhe confiou o seu acervo, no século passado. Seu acervo iconográfico e filmográfico é composto por 15 filmes (em 16mm e 2k), 2.600 fotografias (ampliações fotográficas, negativos fotográficos, e slides – diapositivos) depositadas na Cinemateca Brasileira; de outras 4.500 fotografias depositadas na produtora; mais croquis e desenhos originais.

Patrícia (em pé) ouvem o som do telégrafo, no resgate de um século em Santo Antônio; sentados, Júlio Olivar, então superintendente de turismo de Rondônia, e as irmãs Beatriz Amarante e Maria Cecília, sobrinhas do Marechal Rondon (Foto Daiane Mendonça/SecomRO)

Corajosa e determinada, Patrícia obteve bons resultados nessa missão de reverenciar o trabalho de toda família ligada ao mundo do audiovisual. Resgatou e preservou a memória dos pais e do cinema nacional. Ela e o marido eram sócios na empresa Memória Civelli, que tinha o compromisso histórico de guardar tesouros deixados por Rondon.

Olhar atento

“A referência que trago da Patrícia é de alguém que se cercava de pessoas muito competentes e delas exigia um padrão de qualidade em tudo o que fazia”, disse o jornalista Júlio Olivar. Ele a conheceu quando exerceu o cargo de superintendente estadual de turismo em Rondônia.

“Ela tinha um olhar atento do meio em que vivia; passou por Porto Velho apenas três vezes, mas conhecia pessoas, entre as quais, aquelas que prestavam serviços ao Memorial Rondon: o sargento Antero e seu Moisés”,

Um poste telegráfico abandonado na beira do Rio Madeira foi resgatado por Patrícia e erguido novamente nas imediações do Memorial.

Para o jornalista, Patrícia foi “mais que uma profissional no campo da salvaguarda da memória, uma pessoa idealista e engajada e vocacionada para isso.” “Reencontrei-a no meio do mato, em Espigão d’Oeste, no set de filmagem do Rio da Dúvida, trabalhando com entusiasmo junto com o Mário Cesar.”

Júlio surpreendia-se com os conhecimentos históricos e geográficos de Patrícia, que sugeria localidades e pessoas a contribuir com projetos, situação ocorrida. “Ela dizia: olhe, lá no Rio Ávila, tal pessoa pode oferecer tal coisa” – confirmando assim o estudo que fazia da região.

A jornalista Maria do Rosário Caetano descreveu Patrícia na Revista do Cinema, em 2018:

“Há herdeiros que destroem o patrimônio deixado pelos pais. Em compensação, há os que se desdobram para preservar a memória familiar. Este é caso da produtora Patrícia Civelli, herdeira do acervo da Multifilmes, empresa criada por seu pai, o ítalo-brasileiro Mario Civelli (1923-1993), e que contou com a ajuda de sua mãe, a crítica de cinema, jornalista e roteirista Pola Vartuck (1927-1990), e de sua tia, a montadora e cineasta Carla Civelli (1921-1977), pioneira do cinema feminino no Brasil.

“Patrícia, que conseguiu apoio institucional e empresarial para restaurar Um Caso de Polícia, de sua tia Carla, luta agora pelo restauro de A Sogra, comédia dirigida por Amando Couto. Neste filme, Procópio Ferreira vive Arquimedes, um chefe de estação de cidade do interior, que recebe a visita da mãe de sua esposa. Só que a sogra, rabugenta e mandona, como convém a uma comédia de costumes, interpretada por Maria Vidal, não veio só a passeio. Veio morar na casa do genro.

“Além de buscar patrocínio para resgatar as rabugices da sogra, Patrícia Civelli produz, com parceiros, o longa-metragem Rio da Dúvida, de Joel Pizzini. Este filme, que soma sequências feitas com atores e imagens de arquivo (muitas registradas por um pioneiro do cinema brasileiro, o Major Luiz Thomás Reis), resgata, de passado centenário, o encontro entre o então Coronel Cândido Rondon (1865-1958) e Theodore Roosevelt (1858-1919). De dezembro de 1913 a abril de 1914, o coronel, que se tornaria um dos mais respeitados indigenistas brasileiros, e o ex-presidente dos Estados Unidos, realizaram expedição científica (e aventureira) que atravessou o Pantanal, o Cerrado e a Floresta Amazônica.

“Inquieta, a herdeira de Mario Civelli se impõe imenso desafio: recuperar, depois de A Sogra, mais sete filmes que o pai produziu (ou dirigiu). E promete produzir um longa documental sobre a história de sua família cinematográfica, exposição cinebiográfica com rico acervo de imagens deixado pelo trio Mario-Pola-Carla e livro com os melhores textos de sua mãe, que durante décadas atuou como crítica de cinema e repórter no jornal O Estado de S. Paulo.

“Nunca é demais lembrar que uma das entrevistas de Pola Vartuck, publicada nas páginas culturais do Estadão, obteve significativa repercussão e difundiu a expressão ‘patrulhas ideológicas’, cunhada por Cacá Diegues, indignado com as críticas ao filme Xica da Silva (1976).

“Por que o documentário Rio da Dúvida foi parar nas mãos da produtora Patrícia Civelli? Por razão muito especial: os direitos de imagem de Rondon pertenciam a Mário Civelli e, por extensão, agora pertencem à sua herdeira. Para viabilizar o filme, que traz a grifada assinatura de Joel Pizzini, documentarista dos mais inventivos (vide Caramujo Flor, Glauces e 500 Almas), Patrícia (e sua produtora, a Memória Civelli) uniu-se a Cláudio Petraglia, da Barra Filmes, e buscou apoio da Casablanca, que entrou como coprodutora.

“Patrícia conta que a equipe percorreu todo o trajeto feito por Rondon e por Roosevelt, no começo do século XX. O filme foi roteirizado pelo pesquisador e produtor Mário César Cabral Marques, apaixonado pela história de Rondon e pela experiência vivida por ele junto ao ex-presidente dos EUA (Mário César é autor do livro Rio da Dúvida – O Centenário de uma Epopeia). Idê Lacreta, parceira constante de Joel Pizzini, assina a montagem.

“Enquanto aguarda a finalização de Rio da Dúvida, Patrícia Civelli busca, angustiada, patrocinadores para o restauro de outros longas produzidos por Mario Civelli. “São muitos e alguns estão em situação desesperadora”, avisa.

“O primeiro da fila” – relembra – é A Sogra. “Deste filme, cujos negativos originais desapareceram, existe somente uma cópia em 16 milímetros”. Por isto, “ele está na lista emergencial e só não iniciamos o processo de restauro por falta de patrocínio”.

“O segundo, entre os que estão “em situação gravíssima”, é O Destino em Apuros (Ernesto Remani, 1954), “longa-metragem que marcou a estreia de Paulo Autran no cinema e primeiro filme colorido brasileiro”.

O Craque (José Carlos Burle, 1953) ocupa a vaga seguinte. Trata-se – explica – “de filme que traz o time do Corinthians, campeão do IV Centenário de São Paulo, roteiro de Alberto Dines e Eva Wilma no elenco”. E apresenta outro argumento: “só há um longa-metragem sobre futebol mais antigo que o nosso – “Alma e Corpo de uma Raça”, de Adhemar Gonzaga”. Este filme, “do Acervo da Cinédia, foi realizado em 1938 e restaurado graças aos esforços de Alice Gonzaga”.

“Fecham a lista dos “necessitados de restauro urgente para não morrer”, os longas O Homem dos Papagaios (Armando Couto, 1953), O Grande Desconhecido (Mário Civelli, 1956), Rastros na Selva (Francisco Eichhorn e Mario Civelli, 1958), Bruma Seca (Mário Brasini, 1961) e O Gigante (Mário Civelli, 1968).

“Em junho do ano passado (1917), Patrícia apresentou, na CineOP (Mostra de Cinema de Ouro Preto), cópia restaurada de Um Caso de Polícia, comédia escrita por Dias Gomes e realizada por Carla Civelli. Em tempos de valorização do cinema feminino, o filme ganha relevo por trazer a assinatura de uma pioneira (poucas mulheres dirigiram longas-metragens no Brasil, até a década de 1970).

Um Caso de Polícia, protagonizado por Glauce Rocha e Sebastião Vasconcelos, com participações notáveis de Renato Consorte e Cláudio Corrêa e Castro, foi realizado em 1959 e não conseguiu espaço no circuito exibidor. A presença feminina no comando de um longa-metragem, naquela época, não era tão bem-vista (e desejada) quanto hoje. O tempo (ano que vem, o filme fará 60 anos) foi arruinando negativos e cópias do filme.

“Incansável, Patrícia conseguiu restaurar os precários materiais que encontrou, mas não com a qualidade desejada. Até que, com apoio da Oi e trabalho incansável do restaurador Francisco Sérgio Moreira (1952-2016), ela conseguiu chegar a ótima cópia. Retrabalhou o som e as imagens desta comédia ingênua, mas sedutora. O público que assistiu ao único longa-metragem de Carla Civelli, no centenário Cine Vila Rica, divertiu-se com a engenhosa trama urdida por Dias Gomes.”

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