Taxar carne é desculpa para viés político
Um olhar mais atento nos números atuais da pecuária de corte norte-americana revela um rebanho cada vez menor, preços da carne em alta e demanda firme, o que, naturalmente, sinaliza para a necessidade de importações de outros países. Qual a justificativa, então, para a imposição de uma sobretaxa extorsiva que inviabiliza a entrada da carne brasileira nos Estados Unidos? “Eu posso”, se vangloria Trump. Surpresa zero para a “explicação” típica dos autoritários com muito poder e as consequências não são tão claras e podem não poupar, inclusive, os americanos.
O rebanho bovino norte-americano vem encolhendo e chegou neste ano a 86,7 milhões de cabeças, o menor em 75 anos. Enquanto isso, os preços da carne acumulam alta de 9% em 2025; em junho, o aumento foi de 12,4% e 10,3%, no bife e na carne moída, respectivamente, em relação a junho de 2024, conforme o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA).
Por lá os pecuaristas também vivem uma sequência de problemas climáticos ou sanitários. Foram três anos de seca intensa, com aumento dos custos de produção, principalmente da alimentação dos animais, e intenso abate de fêmeas. São 27,9 milhões de fêmeas de corte, o menor desde 1961, e a estimativa é que o número de novilhas prenhes caiu para 2,92 milhões neste ano, um recuo de 1,7%.
Apesar de o país ter meios de recompor seu rebanho e diminuir a dependência das importações, isso não se resolve com rapidez, leva, pelo menos, dois anos devido ao ciclo pecuário. E muitos analistas observam que a pecuária já não dá tanto lucro quanto antes e que parte dos criadores desistiu de vez da atividade.
Outra preocupação do setor é com a reintrodução da mosca-da-bicheira ou bicheira do Novo Mundo, praga que foi declarada erradicada dos EUA em 1966 e que volta a representar uma ameaça real desde o final de 2024 quando foi identificada no sul do México. Os EUA fecharam sua fronteira às importações de gado do México e colocou em ação uma série de medidas de prevenção e combate à mosca que tem o poder de matar um animal em alguns dias.
Por ser mais barata, a proteína animal mais consumida pelos americanos é o frango e a carne bovina vem em segundo lugar. Mais de 80% da demanda desta proteína são abastecidos pela produção interna. Canadá e México contribuem com cerca de 6% e o restante vem da Austrália, Nova Zelândia, Brasil e outros mercados.
Atualmente, os EUA são o segundo maior importador mundial da carne bovina in natura brasileira. O primeiro é, de longe, a China. Os americanos compram cortes magros que lá são misturados com a carne mais gordurosa, marmorizada, obtida dos animais americanos.
O Brasil se tornou, historicamente, muito competitivo no quesito preço, conseguindo entregar carne mais barata a boa parte dos países do mundo. Vale lembrar que agora Nova Zelândia, Austrália, Argentina e Uruguai foram taxados com tarifas muito menores e, em se confirmando a sobretaxa de 50% ao Brasil, o natural seria que os frigoríficos redirecionassem suas compras para esses países, por exemplo. A questão é que eles não têm produção em escala suficiente para substituírem o Brasil.
Nos cinco primeiros meses de 2025, o Brasil respondeu por 26,6% da carne bovina importada pelos norte-americanos, segundo relatório do Datagro com base em dados do USDA e representa 5,4% do consumo dessa proteína consumida pelos norte-americanos. Mas como o Brasil é um importante fornecedor do mercado global, apenas 12,3% da carne bovina embarcada têm como destino os EUA.
A imposição de Trump parece ter o condão de não beneficiar ninguém de imediato. É o tal jogo perde-perde com potencial de desorganizar cadeias produtivas e criar um ambiente instável no mercado. E terá muito provavelmente impacto no bolso do consumidor final do seu país, que tem no hambúrguer e no bolo de carne moída pratos de consumo cotidiano e que dizem muito sobre a própria identidade nacional.
O gesto errático do ponto de vista econômico tem, porém, um viés político muito claro, expresso com todas as letras quando o presidente Trump diz que é preciso acabar com a “perseguição” ao ex-presidente Jair Bolsonaro que, na verdade, é julgado dentro de um processo legal no STF por tentativa de golpe de Estado, entre outros crimes.
Na última sexta-feira (25) uma carta assinada por 11 senadores democratas norte-americanos faz um apelo a Trump contra o tarifaço de 50%, considerado um “claro abuso de poder” que poderá provocar sofrimento ao próprio país. “Usar todo o peso da economia americana para interferir nesses processos em nome de um amigo é um grave abuso de poder, mina a influência dos EUA no Brasil e pode prejudicar nossos interesses mais amplos na região”, diz trecho da carta.
No subtexto de todo esse episódio não há, enfim, urgentes razões mercadológicas de interesse nacional. É mais um ato do exercício autoritário do poder pelo dirigente de um país que se orgulha do título de maior democracia do mundo, sempre vigilante para defender o “mundo livre”. Estes últimos dias de julho serão, certamente, de muita tensão no Brasil. O importante é que a energia de quem tem poder de decisão seja usada para desmontar um impasse calculadamente construído por quem aposta na confusão e que usa a política para tentar fugir covardemente dos próprios BOs que vão parar na Justiça e onde devem ser resolvidos.
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