Falciforme em MT: quando a dor é crônica e o descaso é estrutural
Por Fátima Lessa*
“Quem tem doença falciforme carrega duas dores ao longo da vida: a dor física e a dor do preconceito”, afirma a cientista social Maria Zenó Soares, coordenadora da Federação Nacional das Associações de Pessoas com Doença Falciforme (Fenafal). Em Mato Grosso, essas dores têm se intensificado devido à desinformação médica, à negligência nos atendimentos e ao despreparo das equipes. São rotineiros os relatos de profissionais que desconhecem o protocolo clínico do Ministério da Saúde, de unidades hospitalares que não reconhecem a gravidade da doença e de pacientes acusados de “inventar sintomas” para obter medicamentos ou atendimento preferencial.
A denúncia é feita por Rosalino Batista de Oliveira, 65 anos, presidente da Associação de Pessoas com Doença Falciforme de Mato Grosso (ASFAMT), que há 37 anos atua na causa, desde que a doença atingiu sua família. Ele e a mulher têm o traço falciforme. Rosalino perdeu dois filhos para a doença: o mais novo, ainda bebê, morreu por causa da falciforme, mas essa causa não consta no atestado de óbito; o segundo, aos 28 anos, após um acidente vascular cerebral (AVC) hemorrágico como consequência direta da doença, após três anos de internação contínua em hospital particular, marcados por dor, desamparo e racismo. O terceiro filho, de 33 anos, também tem a doença e leva vida normal depois que passou a usar hidroxiureia. Conseguiu estudar, se formar e recentemente foi aprovado em concurso federal.
Histórias como a dele se repetem em silêncio por todo o estado, enquanto o número real de mortes segue invisível nos registros oficiais. A realidade inclui filas em UPAs, socorro demorado, dores violentas sem tratamento adequado e um abismo entre o que prevê o protocolo do Ministério da Saúde e o que é oferecido nos serviços públicos. O cotidiano dessas famílias é de sofrimento contínuo. Muitas mães não conseguem trabalhar porque os filhos precisam de cuidados redobrados. Crianças, em sua maioria, não frequentam a escola e, quando vão, não conseguem acompanhar o conteúdo. Há casos de até seis pneumonias por ano.
As crises de dor, frequentes, duram em média dez dias. Para alívio, são necessários dois tipos de medicamentos administrados a cada duas horas, conforme prevê o protocolo do Ministério da Saúde. E mesmo após o fim da dor, o tratamento deve continuar por mais dois dias para evitar recaídas. “A criança grita de dor, chora dia e noite. Parece que acham que negro não sente dor”, desabafa Rosalino. Ele acrescenta: “Na maioria das vezes, o doente, em crise de dor, chega para o atendimento e o médico aplica morfina e manda para casa”.
Em 2024, o ambulatório de referência do estado realizou cerca de 2 mil atendimentos entre janeiro e setembro, com 950 pacientes em acompanhamento, mas as estimativas indicam que o número real esteja entre 1.200 e 1.300. Ainda assim, há muitos fora do sistema ou sem diagnóstico. “Esse abismo denuncia o descaso com a vida de quem adoece”, afirma a pesquisadora Késia Páz, que desenvolveu sua tese de doutorado sobre a doença no estado.
Segundo ela, há um problema ainda mais grave: a subnotificação de óbitos. “Nos territórios quilombolas, o número de casos é aparentemente menor, mas isso se deve às mortes precoces e à ausência de diagnóstico. As pessoas adoecem e morrem antes mesmo de saber que tinham a doença”, alerta. Esse apagamento também se vê nos registros de óbito, em que a falciforme raramente aparece como causa direta, sendo substituída por complicações como infecções, pneumonia, falência de órgãos e AVCs. “É uma forma institucionalizada de invisibilizar a doença e seus impactos”, afirma Maria Zenó. “O que mata não é a falta de conhecimento, é o racismo estrutural. Quem adoece é preto, pobre, majoritariamente usuário do SUS.”
A expectativa de vida é de cerca de 42 anos, segundo estimativa da Fenafal. “Mais de 30 mil pessoas morrem por ano no Brasil em decorrência da falciforme. Muitas dessas mortes poderiam ser evitadas com um sistema de saúde mais preparado”, destaca Zenó.
Em Mato Grosso, o apagamento institucional se reflete até em ações de visibilidade. A Secretaria de Estado de Saúde ignorou, por mais de 15 dias, os questionamentos da reportagem, inclusive sobre o cancelamento do X Simpósio Nacional de Doença Falciforme, que seria realizado em Cuiabá. O evento, custeado com recursos do Ministério da Saúde, foi transferido para Brasília. Para Maria Zenó, o cancelamento expõe a negligência institucional com a população negra. Ela afirma que não houve falta de recursos, mas sim de empenho e vontade política. A organização trabalhou ao longo de todo o ano de 2024 na realização do encontro e só em julho deste ano foi informada de que ele não ocorreria mais na capital mato-grossense.
*Reportagem realizada com apoio voluntário de Fátima Lessa.
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