COLUNA

Regina Alvarez

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A Previdência e os intocáveis

Muito se fala das medidas necessárias para equilibrar as contas públicas, em especial, as contas da Previdência. Se considerado apenas o Regime Geral, que são os segurados do INSS, o déficit foi de R$ 315,7 bilhões em 2023. Se somados todos os regimes previdenciários públicos federais – INSS, servidores públicos civis, militares e servidores do Distrito Federal – o déficit chega a R$ 428 bilhões.

Vista assim em grandes números, essa conta de fato assusta e por isso mesmo não faltam propostas para ajustá-la, dentro e fora do governo. Uma delas é a desvinculação dos benefícios previdenciários do salário mínimo, já que no atual governo foi retomada a política de valorização do mínimo, com reajustes acima da inflação.

Como essa proposta é altamente impopular, já que atinge as parcelas de menor renda da população, integrantes do próprio governo passaram a cogitar nos bastidores outras medidas menos drásticas, mas também com foco nos beneficiários do INSS. Li esta semana em O Globo que uma das ideias em gestação seria a desvinculação do mínimo de alguns benefícios temporários pagos pelo INSS, como o auxílio-doença, o auxílio-reclusão (pago a dependentes de presos em regime fechado) e o auxílio por acidente de trabalho. Pela proposta, esses benefícios seriam corrigidos apenas pela inflação, com perda para os beneficiários e ganhos de receita para o Tesouro, que banca o sistema de Previdência.

Ocorre que há uma incoerência nesse debate, que poucas vezes é levada em conta, mas foi abordada de forma enfática pelo Tribunal de Contas da União (TCU), na apresentação do relatório de contas do governo Lula de 2023, esta semana.

Se olharmos para o déficit per capita, ou seja, calculado pelo número de beneficiários de cada sistema, o Regime Geral, aquele que engloba os 33,5 milhões de segurados do INSS, é o que apresenta o menor valor: R$ 9,4 mil.

No Regime Próprio, que atende a 796 mil servidores civis federais, o déficit per capita é de R$ 69 mil, mas o que chama a atenção é o déficit per capita na previdência dos militares, que engloba 313 mil militares e pensionistas. Nesse caso, chega a R$ 159 mil. Ou seja, o déficit per capita do regime de previdência dos militares é 16 vezes superior ao do INSS, segundo mostrou o TCU.

Enquanto a arrecadação do INSS cobriu 65% de suas despesas e o regime dos servidores civis, 41,9%, o sistema dos militares arrecadou apenas R$ 9,1 bilhões e gastou R$ 58,8 bilhões, em 2023, apenas 15,47% das despesas, destacou o ministro Walton Alencar, do TCU. “O sistema de proteção dos militares é o que impõe maior custo à sociedade por beneficiário e, por isso, deve ser objeto de atenção, estudo e debate”, enfatizou.

Walton destacou também que, na comparação com reformas aprovadas para o INSS e para o regime dos servidores públicos, o sistema dos militares teve poucas mudanças e maiores vantagens ao longo do tempo.

Ele citou a pensão vitalícia para filhas solteiras, que foi extinta para os militares que ingressaram na carreira a partir de 2001, mas continuam onerando os cofres públicos. “As projeções indicam que, até 2060, o governo e a sociedade continuarão a arcar com os custos de tal apanágio”, disse Walton. O ministro apontou ainda outros privilégios. Por exemplo, no caso dos militares, as idades máximas para a passagem para a reserva variam de 50 a 70 anos, dependendo do posto ou graduação, sendo que, nos regimes previdenciários, a idade mínima é de 65 anos”.

Walton criticou também o pagamento de pensões decorrentes do instituto da “morte ficta” atribuído a militares que perdem posto e patente, em razão do cometimento de crime comum ou de grave infração disciplinar. Há poucos dias, reportagem da Folha de São Paulo mostrou que o Exército gasta mais de R$ 20 milhões por ano com o pagamento de pensões para familiares de 238 “mortos fictícios”, como são chamados os militares expulsos da Força por condenações no Judiciário. As pensões são pagas a 310 familiares.

No final de seu relatório, o ministro considera ser imprescindível para o país a reflexão e a avaliação sérias sobre a necessidade de implementar mudanças no sistema de previdência dos militares, “no qual a manutenção de privilégios, em relação aos demais trabalhadores, às custas da sociedade, é cada vez menos aceitável, diante da difícil situação fiscal do país e dos naturais anseios sociais pela moralidade e isonomia”.

Os militares ficaram de fora da reforma da Previdência promovida pelo governo Temer em 2019, que elevou a idade mínima para a aposentadoria de homens e mulheres, reduziu as pensões por morte e outros direitos dos trabalhadores do setor privado. Tudo isso para reduzir o déficit nas contas. Cinco anos depois, novas medidas são cogitadas para reduzir ainda mais os direitos desses trabalhadores, mas os militares seguem intocáveis, mesmo com privilégios inacreditáveis.

E as distorções no sistema previdenciário não param por aí. A Previdência Rural também tem tratamento diferenciado e grande responsabilidade no déficit do Regime Geral, como mostra um estudo dos pesquisadores Fabio Giambiagi, Rogério Nagamine e Otávio Sidone, publicado pela FGV-IBRE.

No caso da Previdência Rural, os homens e mulheres trabalhadores rurais podem se aposentar aos 60 e 55 anos de idade, respectivamente, “provavelmente ainda com capacidade laboral e sem a necessidade de comprovação de contribuição efetiva para a previdência, enquanto os trabalhadores urbanos se aposentam aos 65 e 62 anos de idade, com necessidade de comprovação de 15 anos de contribuição”, destaca o estudo.

A consequência dessas e de outras regras menos rígidas no sistema de Previdência Rural, em relação aos trabalhadores urbanos, é um déficit que chegou a R$ 154 bilhões em 2022. Naquele ano, os gastos do Tesouro com a Previdência Rural chegaram a R$ 163 bilhões, enquanto as receitas somaram apenas R$ 9 bilhões.

Por que então a Previdência Rural também ficou de fora da reforma de 2019 e não se cogita reduzir o déficit com medidas que possam equilibrar o sistema rural?

A resposta vale também para o caso dos militares. O setor ruralista tem uma bancada poderosa no Congresso, assim como os militares têm apoio entre os congressistas. Há um temor, dentro e fora do governo, de desagradar esses setores por razões diversas e, por conta disso, a conta sempre acaba ficando com os trabalhadores urbanos do setor privado, que, a cada reforma, veem seus direitos serem subtraídos, sem força e organização para protestar.

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