Abram alas para o campo
A turma inimiga do fim do carnaval resistiu até o último segundo de folia em vários cantos do país, mas a festa ainda rende muita conversa. Pegando carona nesta esticadinha, resolvi falar do poder de comunicação desta manifestação e de como algumas escolas de samba do grupo especial carioca e paulistano buscaram na agropecuária a inspiração para o desfile.
Este espaço de tanta visibilidade e poder de amplificação ajuda, sem dúvida, a enfrentar uma das grandes dificuldades que o próprio setor reconhece que tem: o de ser visto tal como é, sem preconceitos, em toda sua heterogeneidade, complexidade e relevância.
Em São Paulo, a Mancha Verde levou ao Sambódromo, no Anhembi, o enredo “Do nosso solo para o mundo: o campo que preserva, o campo que produz, o campo que alimenta”. No Rio de Janeiro, o enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel “Pede caju que dou…Pé de caju que dá!” homenageou o caju na Sapucaí.
Além de gerar assunto sobre onde fica o maior cajueiro do mundo, se no Rio Grande do Norte ou Ceará, o tema contribuiu para se conhecer mais da exploração comercial, a cajucultura, e reforçou a conexão com a brasilidade. Nativo do Brasil, o cajueiro oferece alimento seja com o fruto – que, por ser o pedúnculo floral, é, na verdade, um pseudofruto -, a castanha – que é o fruto – ou o suco. Presente em todo o território brasileiro, a planta está enraizada no cotidiano das famílias.
Em Cuiabá, considero que o caju divide espaço fraternal com a manga no pódio das frutas mais queridas. O bom é comê-lo fresco, tendo-se o cuidado, claro, de não deixar o suco escorrer pelos braços e cair na roupa porque é mancha na certa. E qualquer mesa decente de sobremesa traz uma deliciosa compota de caju. No comércio, a forma cristalizada é mais uma opção de sabor.
Por aqui a “chuva do caju” marca o alívio da volta das chuvas, ainda que esparsas, lá por meados de setembro, depois de meses de secura e calor. Ela coincide com o início da floração dos cajueiros, que, de um dia para outro, se cobrem de flores miúdas e de suave perfume. Eu, que tenho um cajueiro que nasceu por conta e cresceu livre no quintal, recebo a “chuva de caju”, todos os anos, como mais uma superação e renovação da natureza.
Como atividade econômica, a cajucultura é forte no Nordeste que detém 95% da produção nacional. O segmento gera mais de 35 mil empregos diretos no campo e 15 mil na indústria. E outros 250 mil indiretos na zona rural e nas cidades, conforme levantamento da Embrapa. No semiárido nordestino, garante ocupação no campo na entressafra de outras culturas, como milho, feijão e algodão. Isso ajuda os trabalhadores a permanecerem na terra, evitando o êxodo rural.
Os portugueses levaram o caju do Brasil para outros continentes e, nos países de clima tropical, a planta prosperou. Entre os produtores mundiais, o Brasil ocupa atualmente a oitava posição; os primeiros são Índia, Costa do Marfim e Tanzânia. E os maiores exportadores de castanha são Vietnã, Costa do Marfim e Gana.
Um pouco de tudo isso foi mostrado na passarela do samba em um enredo que trouxe também lendas e curiosidades sobre o caju. O samba caiu no gosto da geral, viralizou, mas a Mocidade Independente terminou em décimo lugar. Tristeza para os 3.200 componentes da agremiação e milhares de fãs.
Independentemente do resultado, o carnaval foi a plataforma de difusão de informações sobre uma atividade que começa no campo. De forma coloquial e direta e usando tantos recursos artísticos, mostrou a milhões a sua importância econômica e social para o país.
Em São Paulo, a homenagem da Mancha Verde foi para toda a agropecuária. Vendo entrevistas do carnavalesco André Machado a diferentes veículos de comunicação, notei que ele sempre dizia da surpresa que sentiu à medida que aprofundava a pesquisa sobre o tema. Especialmente sobre o quanto há de trabalho pesado, investimento, e muita fé mesmo, para se produzir alimentos e riquezas.
O diretor de harmonia da escola, Danilo Duarte, comentou que tinha noção da importância do setor, mas desconhecia muito do caminho percorrido, de todo o aparato que há por trás, muita ciência, pesquisa, investimentos, avanços tecnológicos. “Foi um aprendizado gigante”, concluiu após o desfile.
Houve alas dedicadas a culturas agrícolas diferentes, como soja, café, cacau e milho. Outras mostraram a pecuária, criação de galinhas e de porcos. Numa linha do tempo foi percorrida a longa história da agricultura brasileira que passou por ciclos, como o do açúcar e do café, até os dias atuais.
Também foi ressaltada a necessidade de se cuidar do meio ambiente. Baianas vestidas de abelhas retrataram o papel destes insetos e de outros polinizadores na produção agrícola. Houve espaço também para a religiosidade, como a devoção a São José, a quem os agricultores recorrem para pedir chuva nos momentos mais ameaçadores das secas.
A Mancha ficou na quinta colocação do Grupo Especial paulistano, o que lhe deu o direito de novo desfile ao público no sábado. Mais uma chance de a mensagem ser vista por milhões de pessoas e de gerar novas reflexões e interesse por pessoas do campo e das cidades.
Para terminar, realço o que trazia o último carro, que representava o Brasil. Havia também uma cúpula mostrando o mundo e, dentro dela, uma emocionante e apoteótica Santa Ceia. Uma mensagem clara de que o desafio da agropecuária é produzir comida suficiente e de qualidade para todos, sem nenhuma exceção. Mas para que esta comida chegue a cada prato, é preciso solidariedade real entre pessoas, povos e governos. Não é uma mensagem nova entre nós, mas, diante da fome e subnutrição tão reais, que revisitemos Betinho!
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