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As policiais militares e suas lutas pessoais

Fátima Lessa*

Foto: SSP SP

 

Na estrutura da segurança pública, as mulheres policiais militares desempenham um papel vital e frequentemente invisível. No dia-a-dia enfrentam desafios que vão além das fronteiras da profissão. Enquanto confrontam cenários de violência inimaginável, essas mulheres se veem divididas entre a missão de proteger a sociedade e a luta para manter suas próprias famílias seguras.

O peso do estresse acumulado no trabalho, aliado a problemas financeiros e responsabilidades familiares, pode se tornar avassalador. Muitas policiais relatam o impacto devastador dessa dualidade em suas vidas, com um número alarmante enfrentando problemas de saúde mental, incluindo depressão e ansiedade, chegando até ao extremo do suicídio.

Entre 2018 e 2022, foram identificados 741 casos de tentativas de suicídio e outras violências autoprovocadas.  Pelo menos é o que apontam dados da Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado.

A saúde mental das mulheres da área de segurança pública foi tema de audiência na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado, em maio deste ano. Especialistas debateram o assédio sofrido e os altos índices de suicídio.

Nos últimos meses, conversamos com várias policiais, incluindo oficiais, sargentos, cabos e soldados, que compartilharam suas experiências, desde o orgulho da profissão até a triste realidade enfrentada nas ruas e dentro da corporação.

O que se observa é que o medo constante e a pressão para lidar com situações críticas não apenas definem suas carreiras, mas também afetam significativamente suas identidades como seres humanos.

Os depoimentos são semelhantes. Optamos por publicar apenas quatro, pois eles resumem o foco do artigo de hoje sobre o adoecimento dos policiais militares de Mato Grosso.

O primeiro é de uma sargenta aposentada que serviu na PM por 38 anos, 90% desse tempo nas ruas do centro de Cuiabá. Ela conseguiu vencer o pensamento de automorte com o apoio de um médico e a ajuda do AA. O segundo caso, contado por outra militar sobre a morte de uma colega em razão de dívidas; o terceiro relato é de uma sargento que está internada em tratamento psiquiátrico, enfrentando surtos e temendo por sua vida; o quarto caso é de uma policial que após sofrer violência doméstica aliado à pressão da profissão não resistiu e se matou.

Neste artigo, exploraremos as histórias dessas mulheres que, apesar dos desafios, se dedicam a servir e proteger, enquanto buscam equilíbrio em suas complexas vidas. Os nomes são fictícios para preservar a identidade e familiares.

Casa vazia

“Chorava no alojamento feminino e dobrava o expediente para não ir para casa, pois lá estava vazia”. Assim a policial militar aposentada Clara começou a contar sua história.

Segundo ela, era final da tarde quando parou o carro na entrada do bairro Paiaguás, Cuiabá, Mato Grosso, desligou o motor e abriu a porta com um único pensamento: tirar a sua vida.  Estava triste e angustiada. Pensou sair do carro e se atirar ou se jogar na frente do carro pra ser atropelada. “Eu tinha vendido a minha arma , não tinha comprado outra, arma” lembrou.

Pensamentos negativos dominavam sua mente. “Na minha cabeça, vinham pensamentos avassaladores que me impediam de valorizar minha luta como mãe solteira, moradora da periferia, criando dois filhos”, contou. E acrescentou: “Vinha nos meus pensamentos: pra que lutou tanto para criar seus filhos e eles te abandonaram? Você tem tudo: dinheiro, carro, casa grande, e hoje você está só”.

Segundo ela, os filhos saíram de casa para construir suas vidas: formar famílias. A filha foi morar com os avós, e o seu companheiro a tinha abandonado por outra mulher mais nova. “Tudo isso trouxe tristeza, solidão, mágoa e ressentimentos”, salientou.

A policial se sentia só e não sabia como enfrentar essa solidão. Sob o peso das ocorrências violentas que lidava diariamente, ela não percebia que estava adoecendo mentalmente. “No trabalho não demonstrava nada e isso foi piorando”, relatou.

Foi naquele final de tarde, no meio daqueles turbilhões de pensamentos tristes, autodestrutivos que ela lembrou de um médico que ajudou sua irmã que havia passado por depressão. “Liguei chorando para ele e compartilhei muitas coisas que escondia no trabalho. Esse médico me encaminhou para um grupo de apoio o NA, onde fiz amizade e passei a frequentar o AA, que me ajudou muito, pois, em momentos de surto, pensava em beber para criar coragem e chegar ao extremo.  Hoje estou bem. Às vezes, vem o choro, mas agora posso ajudar outras pessoas que passam pelo que eu passei”, finalizou.

Reviver essa história trouxe à sargento um profundo sofrimento. Durante nossa conversa pelo WhatsApp, ela expressou a dor que ainda carrega, refletindo sobre os desafios enfrentados ao longo de sua trajetória. A experiência de relembrar momentos tão difíceis a fez perceber a importância de compartilhar sua história, não apenas para seu próprio processo de cura, mas também para inspirar outras mulheres que passam por situações semelhantes.

A luta de uma sargento aposentada

Uma sargento aposentada, que dedicou muitos anos de sua vida ao serviço da sociedade, está atualmente internada em uma clínica para tratamento. Nos últimos tempos, amigos perceberam que ela precisava de ajuda e tentaram ajudá-la, conversando sobre sua situação e as dificuldades que estava enfrentando. Infelizmente, ela não aceitou ajuda. A família também parece relutante em reconhecer que ela precisava de apoio naquele momento delicado.

Segundo uma amiga, ela sempre foi uma profissional exemplar, conhecida por seu comprometimento e coragem em servir a comunidade de Cuiabá. Ao longo de sua carreira, deu seu melhor e, muitas vezes, se dedicou em condições adversas, colocando o bem-estar dos outros à frente do seu.

Atualmente, está em tratamento e, embora se saiba que esse é um passo importante para sua recuperação, os colegas não conseguem deixar de sentir ansiedade pelo seu progresso. Todos estão esperançosos para vê-la sair dessa experiência transformada e renovada.

É importante destacar que ela não tem dependência de álcool, mas está enfrentando uma depressão profunda que, em momentos de crise, a faz acreditar que há pessoas a tentando matar.

O peso das dívidas

Na noite de 8 de setembro de 2022, uma policial militar, de 31 anos, chegou a um ponto trágico. De acordo com informações, ela deu um tiro no queixo e morreu no local, na porta da sua casa. Sabe-se que a militar enfrentava problemas relacionados a questões financeiras, uma situação que pode ter se agravado pela pressão e responsabilidade que sua profissão impõe.

Como policial, segundo os colegas, dedicou sua vida a servir e proteger a comunidade, lidando diariamente com situações de risco e estresse elevado. Essa carga emocional intensa, somada ao compromisso com a segurança pública, muitas vezes deixa os profissionais vulneráveis a problemas de saúde mental.

Especialistas concordam que é fundamental reconhecer que, apesar da bravura e do comprometimento, a saúde emocional dos policiais merece atenção e cuidado. A tragédia de sua perda destaca a importância de um apoio psicológico adequado para aqueles que servem à sociedade.

Uma tragédia silenciosa

A combinação da violência doméstica com a pressão e responsabilidade inerentes à profissão de policial militar pode levar a situações extremas.

No dia 17 de julho de 2019, a soldado da Polícia Militar, S. R. C. tirou a própria vida com um tiro na cabeça no final da manhã, na cidade de Juruena (912 km de Cuiabá). De acordo com informações policiais, meses antes, “ela havia sido vítima de violência doméstica por parte do marido, o que a levou a desenvolver problemas de saúde.”

Conforme especialistas, a soldada se viu sobrecarregada por esse fardo, refletindo a luta interna que muitos profissionais enfrentam ao equilibrar a vida pessoal e a demanda de proteger a sociedade.

Para psicólogos, essa trágica realidade ressalta a necessidade urgente de apoio psicológico e de redes de proteção para aqueles que estão na linha de frente.

*Fátima Lessa é jornalista (UFMA) e mestra em política social (UFMT)

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