Da arena ao cadafalso: pena de morte, o espetáculo continua
Fátima Lessa*
A cena é quase cômica, não fosse trágica. No evento para apresentar a programação oficial do Dia das Crianças, a primeira-dama de Mato Grosso fala em pena de morte. Enquanto balões coloridos tremulam na Arena Pantanal, Virgínia Mendes defende o enforcamento simbólico dos criminosos. Diz que o presidente Lula deveria mudar as leis, afinal – segundo ela – “só ele pode fazer isso”.
Sobrou pro Lula.
Entre um sorriso para as câmeras, a primeira-dama repete: “Eu defendo pena de morte para quem matou”. Depois reconhece, meio de passagem, que a Constituição proíbe. Mas o Brasil, segundo ela, “é muito complicado”, tem “leis retrógradas”.
Retrógradas? Eis a ironia que o microfone não captou. A proposta que defende é filha direta do autoritarismo, herança de quem acredita que a bala e o cadafalso resolvem o que a educação, o acolhimento e a prevenção não têm conseguido enfrentar.
Enquanto isso, a realidade insiste em ser teimosa. Sem argumento e sem querer mirar no governo do marido Virgínia resolveu opinar sobre segurança pública: “não adianta aumentar o número de policiais”, disse. Mas por que, afinal, falar em efetivo?
Talvez porque o assunto esteja em alta. No fim de setembro de 2025, a Associação dos Candidatos Aprovados no Concurso Público para Soldado da Polícia Militar de Mato Grosso (ACAP-PMMT) ingressou com ação judicial na 1ª Vara Especializada da Fazenda Pública de Cuiabá, cobrando do governo estadual a nomeação imediata dos 1.200 aprovados que seguem esperando desde o concurso de 2022.
A ação denuncia o colapso na segurança pública e aponta um déficit de mais de 6 mil policiais na corporação – um buraco que representa quase metade do efetivo previsto em lei.
Ou seja: o problema não é falta de lei. É falta de ação. E, sim, sabemos que aumentar o efetivo, por si só, não resolve a violência. Mas fingir que a falta de policiais não é parte do problema também não ajuda.
O policiamento precisa ser entendido hoje como instrumento de prevenção, presença e proteção. Não queremos mais a polícia que bate, mas a que atua antes do crime, acolhe e evita o pior.
É disso que se trata: de repensar o papel do Estado. Mas, quando falta projeto, sobra discurso. E, diante do vazio da gestão, volta a velha tentação de resolver tudo com a pena de morte.
O bolsonarismo talvez aplauda. O senso comum vibra. E o populismo penal ganha mais uma defensora sorridente, com microfone na mão e olhar maternal.
Mas o que realmente chama atenção é o timing perfeito dessa súbita preocupação com o feminicídio.
Poucas semanas antes, no dia 20 de agosto, a deputada petista Edna Sampaio havia proposto a criação de uma CPI do Feminicídio na Assembleia Legislativa. A ideia era simples: investigar, mapear e propor políticas públicas para conter o avanço das mortes de mulheres no Estado.
A deputada chegou a se reunir com o secretário-chefe da Casa Civil, Flávio Garcia, para tratar do assunto. Dias depois, foi informada de que o governador não aceitaria a CPI. A proposta foi abortada antes mesmo de nascer.
Estranho, não? O governo barra a investigação institucional sobre feminicídios – e, em menos de um mês, a primeira-dama surge pedindo pena de morte em nome das mulheres. Uma coincidência que parece roteiro.
Enquanto uma mulher tenta investigar, outra prega o castigo. Uma pede transparência; a outra, espetáculo. Uma é ignorada; a outra, aplaudida.
Ao fim do evento, a palavra “pena” – que para as crianças ainda rima com “pipa”, “bola” ou “boneca” – foi usada ali como sentença de morte.
Talvez um dia cresçam e compreendam que há adultos que confundem justiça com vingança.
E que, em Mato Grosso, há quem prefira calar CPIs e inflar discursos.
Fátima Lessa* é jornalista e mestra em política social. Trabalhou na imprensa de São Luís, cobrindo Cidades no jornal O Imparcial e O Estado do Maranhão. Também atuou no jornal A Gazeta e no extinto jornal Nosso Tempo, em Foz do Iguaçu (PR), nas Três Fronteiras: Brasil-Paraguai-Argentina. Folha do Estado e A Gazeta, em Cuiabá. Atua como freelancer no jornal O Estado de S. Paulo. Já trabalhou na Folha de S. Paulo.
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