Do busão ao “Dossiê Xandão”, como a mentira viaja rápido demais
Fátima Lessa*

Foto: STF
Segunda-feira fui resolver umas pendências no TRE que não dão para resolver online. Peguei o ônibus, sentei e fiquei no meu passatempo favorito: olhar a cidade passar pela janela. Obras do BRT à parte, estava tudo bem até que uma conversa atrás de mim chamou a atenção.
Um senhor começou a falar com tanta convicção sobre o ministro Alexandre de Moraes que pensei: “Esse aí deve ser professor de Direito, aposentado… alguma coisa assim”. Virei, puxei papo e perguntei se ele era formado na área. Ele riu: “Não, não sou. Tá tudo no Dossiê Xandão”.
O tal “dossiê” ficou martelando na minha cabeça. Resolvi as pendências no TRE e, assim que cheguei em casa, fui matar a curiosidade na internet. Lá estava ele, circulando em grupos de WhatsApp, inclusive um entre colegas jornalistas.
Fiquei impressionada. Porque li o “Dossiê Xandão” e lembro bem das palavras daquele senhor do ônibus. Ele tinha tudo decorado, palavra por palavra. Fico imaginando quantas pessoas Brasil afora também decoraram e, pior, passaram a acreditar e divulgar como se fosse verdade.
Não sei há quanto tempo o “Dossiê Xandão” anda circulando, mas a resposta do jornalista Paulo Motoryn, do Intercept Brasil, foi certeira. Ele desmontou o material ponto a ponto e mostrou que o texto, produzido pelo vereador curitibano Rodrigo Marcial, do Partido Novo, tenta pintar o ministro Alexandre de Moraes como um abusador sistemático de direitos constitucionais.
Motoryn chamou sua análise de Dossiê do Dossiê. Nele, revela que o tal “Dossiê Xandão” lista mais de 300 supostas violações associadas a 77 atos do ministro, com um inflado Placar de Ofensas que vai desde liberdade de expressão até devido processo legal. Para ele, o truque é simples: inflar artificialmente as acusações, repetindo termos como “liberdade de expressão” ou “separação de poderes” mesmo em situações em que esses princípios não se aplicam.
Mais grave ainda, segundo o jornalista, é o fato de o tal “dossiê” usar “especialistas” com claros conflitos de interesse, como uma advogada ligada a um condenado bolsonarista, para dar peso a argumentos frágeis.
Pro “dossiê do Xandão”, até operações da Polícia Federal contra suspeitos de bancar atos golpistas viram “abusos de autoridade”. Eles chegam a usar três fases da Operação Lesa Pátria como prova de arbitrariedade, como se ignorar o básico, tipo prisões cautelares pra evitar fuga ou sumiço de provas, fosse detalhe irrelevante.
E tem mais. Uma das pérolas do “dossiê” é usar o bilionário Elon Musk como “especialista” pra validar críticas. A referência? Um tweet de julho de 2023 em que ele reclama de uma suposta censura no Brasil, especialmente bloqueios de contas no Twitter (hoje X). Musk acusa Moraes de “censura agressiva”, mas não fala nada sobre a Polícia Federal ou operações como a Lesa Pátria. Ou seja, o gênio visionário do espaço foi convocado pra opinar sobre um assunto que ele claramente não parou nem cinco minutos pra entender.
Elon Musk publicou: “This aggressive censorship appears to violate the law & will of the people of Brazil.” X (antigo Twitter). Em tradução livre: “Essa censura agressiva parece violar a lei e a vontade do povo brasileiro”.
E o melhor (ou pior) é que não para por aí. O site que hospeda o tal dossiê não só disponibiliza o PDF, mas também convida o leitor a assinar um pedido de impeachment de Moraes, de quebra, pedindo CPF e telefone. Parece menos defesa da democracia e mais uma coleta de dados de simpatizantes
E, ao que tudo indica, a estratégia está funcionando. Esse material já circula livremente. Chega a políticos como Eduardo Bolsonaro, a figuras como o blogueiro foragido Allan dos Santos e, claro, ao “público-alvo” perfeito, gente como o senhor do ônibus, que nunca estudou Direito, não acompanha jornais e agora fala com firmeza sobre supostos abusos do STF como se tivesse acabado de sair de uma audiência no tribunal.
Esse episódio escancara uma verdade incômoda. A desinformação não precisa ser grotesca para ser perigosa. Ela pode vir vestida de relatório sério, cheia de números e citações “técnicas”, mas ainda assim distorcer fatos, omitir contextos e manipular fontes para vender uma narrativa.
É aí que entra o jornalismo sério. Não para proteger personalidades, mas para proteger o debate público de ser sequestrado por PDFs que cruzam grupos de WhatsApp mais rápido que qualquer apuração de verdade.
Porque, se a mentira viaja de busão lotado, cabe à imprensa garantir que a verdade, mesmo pegando trânsito, chegue inteira ao destino.
Fátima Lessa* é jornalista e mestra em política social. Trabalhou na imprensa de São Luís, cobrindo Cidades no jornal O Imparcial e O Estado do Maranhão. Também atuou no jornal A Gazeta e no extinto jornal Nosso Tempo, em Foz do Iguaçu (PR), nas Três Fronteiras: Brasil-Paraguai-Argentina. Folha do Estado e A Gazeta, em Cuiabá. Atua como freelancer no jornal O Estado de S. Paulo. Já trabalhou na Folha de S. Paulo.
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