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Joias da sabedoria internacional mato-grossense

Fátima Lessa*

Como sempre, ao tomar café, dou uma rápida zapiada pelas notícias nos sites locais. Depois, vou para os nacionais. Até aí, nenhuma novidade, quero acreditar que seja a rotina de muitos jornalistas. Para mim, que sou cria do jornal impresso, esse ritual tem sabor de café requentado com nostalgia: folhear virou rolar o dedo na tela, e o cheiro da tinta deu lugar ao brilho incômodo do LED. Mas sigo firme, embora com saudade do papel e do dedo sujo de tinta.

Bom, mas o que estou querendo compartilhar hoje é um verdadeiro manjar de pérolas políticas servido pela primeira-dama de Mato Grosso. Um vídeo, uma entrevista, uma fala, uma conversa com a imprensa… não sei ao certo o que aquilo foi. Só sei que, entre um sorriso e outro, ela soltou essa joia:

“Lula provocou a ira de Donald Trump, que impôs sanções de 50% sobre a produção brasileira. Acho que teve um grande erro do presidente Lula, ele errou ao provocar o presidente dos Estados Unidos, que é um mega presidente. Eles são uma força monstruosa. Nós dependemos dos Estados Unidos, nós somos pequenos por provocar quem é grande.”

Respira. Leia de novo. Agora sim, vamos aos trabalhos.

Lula provocou a ira de Donald Trump

Pera. Pela fala, parece que, segundo Virginia, ele acordou um dia, bateu na mesa oval e gritou: “Não! Quero sobretaxa de 50% sobre o Brasil porque fui provocado!”

É quase uma cena de novela. Lula mexe no cafezinho. Trump surta no café da manhã.
Atribuir decisões complexas de política comercial à “ira” pessoal é coisa de quem acha que relações internacionais se resolvem com treta de vizinho.

Mega presidente.” O que seria isso? Um chefe de Estado com superpoderes? Um Pokémon evoluído? Um produto turbinado do American Way of Life? Mega, pra mim, é só a da Loteria: Mega-Sena. E mesmo assim, a gente quase nunca acerta.

Força monstruosa.” Em que sentido, primeira-dama? No sentido Godzilla? Tipo aquele monstro gigante que sai destruindo tudo e depois ainda quer posar de herói? Porque, se for isso, talvez estejamos falando da mesma coisa.

Nós dependemos dos Estados Unidos.” No quê exatamente? Nos hambúrgueres do McDonald’s? Nos filmes da Marvel? Ou na autodeclaração de que ainda são o farol da democracia mundial?

Nós somos pequenos por provocar quem é grande.” Essa me emocionou. Choraria se não estivesse gargalhando. É quase uma releitura pós-colonial de “o Brasil que se ponha no seu lugar”, versão “recatada e do lar”. O velho complexo de vira-lata, tão bem descrito por Jessé Souza, ressurge agora com esmalte e tailleur.

No fim das contas, o que vemos é a repetição fiel, quase caricatural, de um discurso que idolatra o Norte e culpa o Brasil por existir. É o antinacionalismo de salto alto. E tudo isso enquanto o filho do ex-presidente (aquele que jurava amar a pátria acima de tudo) faz campanha contra o Brasil nos Estados Unidos, pedindo sanção econômica, como se fosse bonito pedir castigo pra própria casa.

De um lado, a diplomacia brasileira tentando contornar as birras do comércio internacional. Do outro, figuras públicas que mal decoraram a cartilha da subserviência — e ainda a recitam em voz alta, em rede social, com um sorrisinho de quem descobriu a América. De novo.

Se for pra nos comparar com alguém, que seja com o Uruguai: pequeno, mas altivo. Não com um poodle de madame que treme quando o pastor-alemão late.

Enfim, sigo tomando meu café, cada vez mais amargo.

E não parou por aí.

O momento mais revelador da entrevista (ou seria da sessão espírita com o espírito de Olavo de Carvalho?) veio na tentativa da primeira-dama mato-grossense de fazer geopolítica internacional com base em… boatos de grupo de zap? Vai saber.

O repórter, tomado de um entusiasmo que me fez duvidar se ainda estávamos lendo jornalismo ou um diário íntimo, escreve, sem aspas nem pudor:

“Na oportunidade, Virginia citou ainda as alfinetadas da primeira-dama do Brasil, Janja, por ataques do ex-aliado do Trump, o bilionário Elon Musk.”

Pausa dramática. Vamos por partes.

Alfinetadas?
Janja agora virou adolescente tretando em thread do X? Musk virou um bibelô sensível que não pode ser cutucado? Alguém avise que o cara é dono da plataforma que promoveu linchamento digital, desinformação e ataques à democracia. Mas, claro, na lógica da subserviência, ele é só “parceiro do Trump”. Fofo.

O bilionário Elon Musk.”
Ah, o bilionário. Quando falta argumento, a conta bancária resolve. Não importa se o sujeito ameaça ministros do STF ou tenta pautar governos soberanos. O que vale mesmo é o cifrão. Bilionário = intocável. Quase santo. Canonização em dólar.

Aí vem o gran finale da fala da primeira-dama de MT:

“A Janja provocou o Elon Musk, fez uma fala muito pesada em relação a ele que é parceiro do Trump. A gente é muito pequeno, não pode provocar quem é grande, temos que nos unir.”

Essa ideia de que “não podemos provocar quem é grande” merece um monumento. Um busto em bronze erguido bem no centro da síndrome de vira-lata brasileira. Talvez com a inscrição: “Aqui jaz o orgulho nacional, enterrado com a anuência das elites locais.”

Unir com quem, minha senhora? Com o Trump? Com o Musk? Com o clube dos que tentam desacreditar eleições quando não ganham? E nós somos pequenos em quê exatamente? Em autoestima? Em projeto de país? Porque, sinceramente, quem diz que somos pequenos ao menor sinal de tensão internacional não entendeu nem o tamanho da Amazônia, quanto mais da soberania.

E Janja, coitada, virou bode expiatório de plantão. Mulher, socióloga, politizada, e agora culpada por ter opinião. No mundo onde as primeiras-damas devem sorrir, acenar e, no máximo, inaugurar cozinha solidária, Janja é uma anomalia perigosa.

Enquanto isso, aqui do lado de cá da tela, sigo com meu café (já quase frio), tentando digerir esse banquete de submissão travestido de opinião.

 

*Fátima Lessa é jornalista e mestre em Política Social . Trabalhou na imprensaj de São Luís, cobrindo Cidades, no O Imparcial e O Estado do Maranhão. Também atuou em A Gazeta e no extinto jornal Nosso Tempo, em Foz do Iguaçu (PR), nas Três Fronteiras: Brasil-Paraguai-Argentina. Atua como freelancer no jornal O Estado de S. Paulo. Já trabalhou na Folha de S. Paulo, assessorias de sindicatos e ONGs.

 

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