Banner
Banner

O concerto invisível do jornal

Por Fátima Lessa

Até meados dos anos 90, fazer jornal era como reger uma orquestra. O diagramador, maestro discreto, ficava diante da grande mesa de engenheiro, cercado de réguas, esquadros, estiletes e calculadora. Ao lado, o editor, parceiro inseparável, afinava o ritmo da partitura. Cada gesto tinha seu compasso, cada página, sua melodia. O barulho da redação anunciava o jornal que chegaria às mãos do leitor.

O boneco do jornal, também chamado de esqueleto ou planta, era a grande partitura que orientava todos os músicos. Linhas e colunas já estavam traçadas, esperando o encaixe preciso de cada nota: título, sutiã/corpete, foto, box e o famoso olho, trompete que chamava atenção sem gritar. O editor geral e o diagramador decidiam juntos a ordem da sinfonia: manchetes, chamadas, aberturas de página. Hoje, o som se perdeu, mas a memória dessa rotina continua viva.

O diagramador pedia:

– Um título de três linhas, cinco toques cada.

O editor, pronto na máquina de escrever questionava:

– Cinco toques? Vai apertar….

E lá ia o editor, feito clarinetista tentando alcançar a nota exata.

Na titulação, quem dava o tom era sempre o diagramador, determinando toques e linhas como maestro exigente que sabe a exata intensidade de cada instrumento. Manchetes de capa podiam dispensar o sutiã, mas nas matérias de abre de página ele era quase obrigatório.

Eu achava graça no uso dessa palavra sutiã ali e, certa vez, perguntei a um diagramador o porquê do nome. Ele apenas sorriu, como violinista que conhece o segredo da melodia e prefere não revelar a partitura.

E de fato, o corpete ou sutiã tinha esse papel discreto, correndo suave como base de cordas discretas que sustenta a harmonia. O box surgia no canto, um solo inesperado. O olho vinha como trompete, entrando no meio da melodia para prender a atenção. Tudo era colado, cortado, ajustado. Não havia botão de desfazer. Cada gesto era definitivo, cada recorte precisava encaixar na harmonia da página.

A redação inteira era um ensaio vivo:

– Esse título não fecha!

– O olho está cobrindo a foto, mexe ai!

– Se mexer aqui, o título não fecha!

– Então encurta o título!

Entre risadas, discussões e broncas, o jornal se compunha página a página, até chegar ao momento sublime: a primeira prova impressa, como o aplauso que encerra o concerto. Tudo feito com cuidado, como músicos que conhecem a partitura e confiam uns nos outros – editor, diagramador, repórter – parceiros inseparáveis no fazer jornal.

Os regentes da redação

No O Imparcial, lembro bem dos dois regentes dessa orquestra: “Mari Doihara, a japinha, e Luiz Henrique Carvalho, o Bomsó” – lembrou-me o Gojoba, ontem, por MSN, porque eu só lembrava dos apelidos – cada um com seu compasso, mas ambos afinados na mesma melodia. O editor geral era o Gojoba. Na Gazetinha, em Foz do Iguaçu, o grande regente era o Reciel Rocha, o Rê, ao lado do Adelino e às vezes com a Ana Mejia.

O repórter, ao escrever sua matéria, não estava livre para improvisar. Recebia a ordem de quantas linhas deveria escrever, obedecendo ao espaço reservado. Evitava-se assim o indesejado “joelho”. Era o diagramador quem, com sua maestria invisível, afinava títulos, colunas e imagens para que a harmonia da página se completasse.

– Quantas linhas precisa? perguntava o repórter, já prevendo o metrônomo da página.

– Vinte e cinco, paragonadas. Não quero joelho.

O chamado paragonar garantia que nenhuma coluna ficasse menor que a outra, mantendo a harmonia, como sopros que fecham no mesmo acorde. O indesejável joelho, ocorria quando uma coluna ficava menor que a outra e a harmonia da página se perdia. E o sutiã, para as matérias de abre de página, sustentava a manchete como corda bem tensionada.

Cada expressão tinha som, ritmo e peso na sinfonia: boneco, sutiã, joelho, olho, corpete… todas compunham a música da redação.

Havia também o burburinho constante. O tec-tec apressado das máquinas de escrever, o telefone que não parava de tocar, as conversas atravessadas no mesão de engenheiro, onde editor e diagramador trocavam cumplicidades como regente e solista afinados.

Quase tudo desapareceu ou foi “inglesado”: boneco virou layout, box virou “caixa” ou “sidebar”, sutiã se transformou em subtítulo técnico. Até o verbo “paragonar” mal se ouve mais.

A própria função do diagramador tradicional, que organizava manualmente títulos, corpete, fotos, box, olho e ajustava cada coluna no boneco, foi praticamente substituída pelo webdesigner ou designer de página, muitas vezes auxiliado por softwares de diagramação digital. A “alma” do diagramador continua, mas sem aquela conversa atravessada no mesão, sem a cumplicidade diária entre ele e o editor. Tudo agora é muito frio, distante, silencioso demais.

Os softwares fazem em minutos o que antes exigia paciência, cálculo, régua, estilete e cola. E, naqueles dias, a música era outra: o burburinho da redação, o cheiro da cola fresca, o estalo seco do estilete no papel e o compasso das máquinas de escrever marcando o ritmo. Tudo se fazia no coletivo- entre risadas, discussões e silêncios cúmplices porque fazer o jornal, antes de ser notícia impressa, era sobretudo convivência.

Quando a primeira prova saía do laboratório, era como o aplauso que encerra o concerto. A confirmação de que a orquestra tinha alcançado a harmonia. As cortinas se fechavam, as luzes da redação apagavam-se, e no raiar do dia seguinte, entrava em cena o último músico: o jornaleiro, levando a sinfonia às ruas da cidade.

De pés ligeiros, jornais debaixo do braço, ele fazia das manchetes um brado, anunciando em voz alta o que horas antes nascera no silêncio das réguas e dos toques.

A orquestra da redação, enfim, encontrava seu público. A sinfonia ganhava corpo nas esquinas, nos becos e nas praças, carregada na voz dos jornaleiros:

– Extra! Extra!

E assim, da régua ao grito do jornaleiro, cada um cumpria sua nota, cada gesto completava a partitura. O jornal impresso não era apenas notícia: era um concerto coletivo, afinado no ritmo da cidade, e a camaradagem da redação ecoava até os ouvidos de quem aprendia a ler a cidade pelas páginas impressas.

 

*Fátima Lessa é jornalista e mestre em Política Social . Trabalhou na imprensaj de São Luís, cobrindo Cidades, no O Imparcial e O Estado do Maranhão. Também atuou em A Gazeta e no extinto jornal Nosso Tempo, em Foz do Iguaçu (PR), nas Três Fronteiras: Brasil-Paraguai-Argentina. Atua como freelancer no jornal O Estado de S. Paulo. Já trabalhou na Folha de S. Paulo, assessorias de sindicatos e ONGs.

 

Em nossa seção de artigos do eh fonte destacamos opiniões de leitores, selecionadas por nossa equipe editorial para assegurar qualidade e pluralidade. Os artigos refletem as visões dos autores, não a posição oficial do eh fonte. Nosso propósito é incentivar discussões e debates, oferecendo um espaço para diferentes vozes, tendências e ideias.

Compartilhe

Assine o eh fonte

Tudo o que é essencial para estar bem-informado, de forma objetiva, concisa e confiável.

Comece agora mesmo sua assinatura básica e gratuita: