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Quem é o autor quando a criação vem da máquina (IA)? (Parte 1)

Geraldo da Cunha Macedo*

Foto: Freepik

A polêmica dos direitos autorais na era da inteligência artificial

Poucas inovações tecnológicas provocaram debates tão intensos quanto atualmente a inteligência artificial. Contudo, entre todas as controvérsias que permeiam sua ascensão, talvez nenhuma seja tão provocadora — ou tão desafiadora — quanto aquela que a coloca frente a frente com um dos pilares da criação humana: o direito autoral. Afinal, quem é o autor quando a obra nasce de um algoritmo? A IA, que outrora era apenas instrumento, agora ameaça o próprio conceito de autoria, deslocando fronteiras jurídicas, filosóficas e éticas.

Esta crônica, dividida em PARTE 1 e PARTE 2, mergulha nessa polêmica, refletindo sobre os limites da legislação atual e os possíveis caminhos para garantir que, mesmo em meio à revolução tecnológica, a dignidade da criação humana continue sendo respeitada.

Vivemos uma era em que a linha entre humano e máquina se torna cada vez mais tênue. Em poucos segundos, sistemas de inteligência artificial conseguem criar imagens, compor músicas, redigir poesias e produzir textos com coerência e estilo. Mas, ao lado do fascínio, emerge uma questão inquietante para o Direito do Autor: quem é, de fato, o autor dessas criações? A quem pertencem os direitos sobre algo que foi “gerado” por uma entidade que não é humana? Quem será o titular da obra criada, a máquina, quem criou a máquina ou quem deu o comando? E, talvez ainda mais delicado: estaria a IA, ao aprender com livros, obras de arte e composições musicais já existentes, cometendo uma infração aos direitos autorais? Essas são dúvidas recorrentes entre advogados, jornalistas e o público em geral, com quem tenho dialogado sobre o tema.

Além disso, por ser um tema polêmico, têm surgido diversos artigos acadêmicos e manifestações públicas que não apenas problematizam a autoria de obras geradas por inteligência artificial, mas também sustentam que a legislação autoral brasileira estaria defasada diante dessas novas tecnologias. Por este motivo resolvi dividir esta crônica (este artigo) em duas partes.

No entanto, essa percepção ignora que a própria Lei de Direitos Autorais (LDA) já contempla, em sua redação vigente, dispositivos suficientemente abertos para abranger novos meios de criação. Basta observar o artigo 7º, que considera protegidas como obras intelectuais “as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro”.

Ou seja, a lei já reconhece que as formas de expressão artística, literária ou científica evoluem com o tempo — e que novos meios, como os digitais e os baseados em inteligência artificial, são compatíveis com o regime protetivo desde que haja uma criação humana originária A norma, portanto, não exige reformulação para legitimar o uso de ferramentas tecnológicas no processo criativo, mas sim uma interpretação coerente com seus princípios fundantes, especialmente a centralidade da intervenção humana como elemento indispensável à caracterização da autoria.

No Brasil, o direito autoral, fortemente inspirado no droit d’auteur francês, transcende o tempo e as transformações tecnológicas. A proteção da obra não se condiciona ao suporte em que ela se manifesta, mas sim à expressão criativa oriunda de um sujeito de direito, a pessoa física criadora. Seja em um disco de vinil, uma fita cassete, um pedaço de guardanapo rabiscado, um arquivo de streaming ou mesmo um conteúdo gerado com auxílio de inteligência artificial, o que importa — e deve ser juridicamente reconhecido — é o vínculo entre o autor humano e sua criação. É o liame jurídico entre autor e sua obra que denominamos de direitos autorais. O meio pode variar; o direito, não. O reconhecimento da autoria e a proteção de seus direitos são os pilares do sistema autoral, independentemente da forma de acesso, reprodução ou difusão da obra.

Essa concepção encontra respaldo na Lei nº 9.610/1998, sobretudo nos artigos 28 e 29,  que considero os mais importantes e reafirmam que cabe ao autor decidir sobre a destinação de sua obra, inclusive para exploração econômica. O artigo 28 assegura que “cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica”, enquanto o artigo 29 disciplina as diversas modalidades de utilização que o autor pode conceder, tais como, reprodução, distribuição, comunicação ao público e disponibilização digital, sempre subordinadas à autorização do titular. Esses dispositivos deixam claro que, independentemente da evolução dos suportes ou das novas formas de circulação de conteúdos — como as plataformas de streaming, redes sociais ou mesmo as produções assistidas por inteligência artificial — o exercício e a gestão dos direitos patrimoniais continuam a repousar no consentimento do autor. Assim, a obra, uma vez criada, permanece sob o domínio jurídico daquele que realizou o ato criativo original, em plena consonância com a Convenção de Berna (art. 2º) e o Acordo TRIPS (art. 9º).

Assim sendo, cumpre esclarecer que o essencial não é o meio pelo qual a obra é acessada, mas o reconhecimento da autoria e dos direitos do criador sobre sua obra. Nesse contexto, constata-se que a Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) não se encontra defasada, como por vezes se argumenta, mas, ao contrário, permanece adequada e aplicável, justamente por proteger o vínculo jurídico entre o autor e sua criação, independentemente do suporte ou da tecnologia empregada.

Encerrada a Parte 1, na próxima parte abordaremos sobre: Quem deve ser considerado o autor das obras geradas por inteligências artificiais?

 

*Geraldo da Cunha Macedo é Mestre em Propriedade Intelectual e Inovação, Advogado, Economista, presidente da Comissão de Propriedade Intelectual da OAB/MT e Presidente da Comissão Especial de Propriedade Intelectual do Conselho Federal da OAB.

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