Quem é o autor quando a criação vem da máquina (IA)? (Parte 2)
Geraldo da Cunha Macedo*
A polêmica dos direitos autorais na era da inteligência artificial
Dito isso (Parte 1), qual seja, que a Lei de Direitos Autorais é atemporal, passamos agora a enfrentar a questão central e de grande relevância nesta Parte 2: afinal, quem deve ser considerado o autor das obras geradas por inteligências artificiais? A partir dessa indagação, desdobram-se diversas nuances e implicações jurídicas, éticas e conceituais que merecem análise cuidadosa.
A Lei de Direitos Autorais brasileira (LDA), a Lei nº 9.610/1998, foi criada muito antes dessa revolução digital. Seu Art. 11 é claro ao afirmar que “autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica”. Não há margem, portanto, para se reconhecer como autor uma entidade que não seja humana. O resto é especulação. Essa definição, aparentemente simples, ganha contornos complexos quando lidamos com sistemas de IA que são capazes de produzir conteúdos inéditos, muitas vezes indistinguíveis das criações humanas.
Outro dispositivo relevante é o Art. 8º, que estabelece que “não são objeto de proteção como direitos autorais (…) o aproveitamento industrial ou comercial das ideias contidas nas obras”. Isso nos convida a refletir sobre o processo de aprendizagem das IAs. Ao serem treinadas com vastos conjuntos de dados — muitos deles compostos por obras protegidas, como livros, músicas e imagens —, as máquinas “absorvem” estilos, estruturas, vocabulários e padrões estéticos. Mas esse aprendizado, por si só, constitui violação de direitos autorais?
É importante destacar aqui um paralelo com a prática acadêmica e intelectual humana. Quando compramos vários livros em uma livraria com o objetivo de “aprender” para desenvolver um artigo, essa simples leitura ou pesquisa não viola os direitos autorais dos autores consultados[2]. Estudamos diversos textos, absorvemos ideias, analisamos argumentos e, a partir dessa base, elaboramos algo novo (original). Quando citamos, seja direta ou indiretamente, desde que de forma adequada, não estamos infringindo a lei — pelo contrário, estamos exercendo o direito de uso legítimo do conhecimento. Essa dinâmica, por analogia, também ocorre no aprendizado de uma IA. A máquina lê, compila, reconhece padrões. Não necessariamente copia. A discussão jurídica está justamente em identificar o ponto em que esse processo deixa de ser aprendizado e passa a ser apropriação indevida.
Na prática, muitas criações feitas com auxílio de inteligência artificial vêm sendo registradas. Mas não por serem criações da máquina — e sim porque envolvem alguma intervenção humana relevante. O registro de direitos autorais no Brasil requer originalidade e autoria humana[3]. Quando há um operador humano que formula comandos específicos, refina os resultados e escolhe conscientemente os elementos que compõem a obra, é possível reconhecer sua participação criativa. Nesse caso, a IA é tratada como uma ferramenta, e não como autora. Da mesma forma que um pincel ou um software de edição, ela serve ao propósito criador de um ser humano.
Por outro lado, quando a criação é inteiramente automatizada, sem intervenção criativa humana, não há como atribuir autoria — e, portanto, tampouco titularidade de direitos autorais. O desenvolvedor do sistema de IA tampouco pode ser considerado autor da obra final, pois seu mérito reside na criação do instrumento, e não no conteúdo específico que esse instrumento venha a gerar. Assim, somente o humano que exerce controle artístico, intelectual ou técnico sobre o processo criativo pode ser considerado autor, de acordo com a legislação brasileira vigente.
É fundamental compreender que o uso de ferramentas, por mais sofisticadas que sejam, não transfere autoria para quem as criou. Se um bolo é feito utilizando-se a batedeira de marca Y, assado no forno X e cortado com a faca Z, o resultado final não pertence aos fabricantes desses instrumentos, mas sim à pessoa que reuniu os ingredientes, combinou sabores, determinou o ponto de cocção e imprimiu ali sua intenção estética ou afetiva. Da mesma forma, se uma obra é criada digitalmente por meio de um programa como o Paint ou qualquer outro software, não se pode atribuir a autoria ao desenvolvedor do sistema, mas ao usuário que, ao manejar o programa, imprimiu sua criatividade e concepção original à obra. A inteligência artificial, ainda que mais complexa, deve ser entendida dentro da mesma lógica: é uma ferramenta a serviço do intelecto humano, e não um criador autônomo reconhecido pelo ordenamento jurídico.
A inteligência artificial deve ser compreendida como mais uma ferramenta tecnológica a serviço da criatividade humana — assim como, em seu tempo, foram a máquina de escrever, o computador, a impressora, o forno, ou mesmo os eletrodomésticos que facilitaram processos antes inteiramente manuais. A IA não rompe com essa tradição: ela se insere na linha evolutiva dos instrumentos criados para ampliar as capacidades humanas, e não para substituí-las como sujeitos de direito. Assim como os inventos anteriores, sua função é auxiliar — não reivindicar autoria.
Essa situação revela uma lacuna normativa. A legislação atual não foi pensada para lidar com agentes não humanos capazes de criação autônoma. A realidade ultrapassou o texto legal, e o que antes parecia ficção científica tornou-se um desafio jurídico concreto. Tribunais no exterior já enfrentam casos em que autores e empresas questionam o uso de seus materiais para treinar modelos de IA. No Brasil, ainda estamos nos primeiros passos desse debate, mas é evidente a necessidade de uma atualização da legislação, que contemple os novos meios de criação, sem comprometer a proteção aos direitos morais e patrimoniais dos verdadeiros autores.
Se fosse diferente, seria necessário reconfigurar toda a estrutura do nosso ordenamento jurídico. Para que a inteligência artificial pudesse ser reconhecida como autora, teríamos que alterar o próprio conceito de autoria previsto na Lei de Direitos Autorais, cujo art. 11 estabelece de forma inequívoca que “autor é a pessoa física criadora da obra literária, artística ou científica”.
Mais do que isso: admitir que a IA seja criadora implicaria conceder-lhe personalidade jurídica, algo reservado às pessoas naturais ou jurídicas. O Código Civil brasileiro, em seu art. 1º, afirma que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”, e o art. 2º complementa que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”. Ou seja, o reconhecimento da IA como sujeito de direito exigiria uma ruptura conceitual com os próprios fundamentos do Direito Civil contemporâneo, o que vai muito além de uma simples atualização normativa.
A inteligência artificial é, sem dúvida, uma ferramenta poderosa. Mas o Direito deve garantir que ela permaneça como tal — um meio para potencializar a criatividade humana, e não para substituí-la sem critério. A autoria é, antes de tudo, uma expressão do intelecto, da sensibilidade e da intenção humanas. Preservar essa definição é proteger não apenas os direitos dos criadores, mas a própria natureza da criação.
*Geraldo da Cunha Macedo é Mestre em Propriedade Intelectual e Inovação, Advogado, Economista, presidente da Comissão de Propriedade Intelectual da OAB/MT e Presidente da Comissão Especial de Propriedade Intelectual do Conselho Federal da OAB.
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