Destino da Santa Casa passando de mão em mão
O coração aperta quando se vê parte da fachada do imponente prédio da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá escorada por estruturas metálicas. O desalento aumenta ao se constatar que as autoridades estão jogando, de um colo para outro, o destino desse histórico imóvel e de seus serviços. Não há esforço concreto para salvar a unidade, somente reuniões sem decisões, intenções sem propostas viáveis e anúncios que sugerem deixar em segundo plano uma saída para o hospital.
Sem perspectivas de solução para o problema, o que se tem até agora é a venda, por leilão, do prédio da Santa Casa, determinada pelo TRT, pelo valor de R$ 54,7 milhões, e o posicionamento definitivo do governador Mauro Mendes pelo fechamento do complexo. Isso significa suspender o atendimento SUS da Santa Casa a pacientes oncológicos, de hemodiálise, de pronto atendimento pediátrico e casos de neurologia, psiquiatria, cirurgia, cardiologia, entre outras especialidades.
No caso da decisão do TRT, trata-se do “cumprimento rígido da lei”, pois o valor arrecadado em leilão quitará os cerca de 470 processos de ex-empregados da Santa Casa. Já no âmbito do governo estadual, a promessa e justificativa para o fechamento do hospital é que os serviços do complexo migrarão para unidades em construção. Pronto!
Quanto à herança cultural, o valor histórico da Santa Casa – um hospital fundado no século XIX, ainda no período colonial – toda riqueza e memória presentes naquele prédio, ao que parece, nada disso foi levado em conta na decisão do governo.
A Santa Casa, atualmente sob a gestão do estado, localiza-se na praça do Seminário, próxima ao morro da Conceição, onde está a Igreja Nossa Senhora do Bom Despacho, uma das mais suntuosas de Cuiabá. Nesse ponto começava o antigo bairro Mundéu, onde nasci e vivi até a juventude. O Mundéu era próximo ao centro da cidade e o deslocamento, a pé, a partir do bairro, era fácil e rápido. No caminho, a descida e a subida da ladeira da Santa Casa eram obrigatórias.
Como cuiabana vivenciando este momento em que a Santa Casa se apresenta como algo incômodo aos governantes, busquei meus conterrâneos do Mundéu para dividir com eles a aflição sobre o futuro do hospital. Na minha percepção, é clara a falta de sensibilidade e identidade cultural de algumas autoridades públicas que, portanto, não dão bola para o sentimento de pertencimento que os cuiabanos têm em relação à Santa Casa. Para nós, ela é um símbolo histórico e cultural da nossa vida.
O escritor Zeca Tenuta, autor de “Cuiabá da tchapa e da cruz”, morador do Mundéu, recordou à coluna que, “desde a sua fundação, em 1817, a Santa Casa foi o refúgio seguro dos moradores da cidade, independentemente da sua condição financeira, na busca de meios para tratar da saúde”. Portanto, “saber da intenção do poder público em se desfazer do maior ícone da história para tratamento de saúde de Cuiabá causa muita revolta, pois fica evidente o descompromisso, ou pouco caso mesmo, com o nosso legado cultural”, completou.
Para Vera Lúcia Macedo, ex-moradora também do bairro, a Santa Casa é um ponto de referência de valor, daí que “a perspectiva de sua possível venda evoca um profundo sentimento de perda e desrespeito, uma ferida na identidade cuiabana”. Ela frisou que “a sensação é de dor, pois uma parte significativa da história da cidade está sendo negligenciada”, e criticou “a falta de sensibilidade e respeito por esse patrimônio, por sua cultura e tradição, elementos da memória e identidade cuiabanas”.
À coluna, Marcelo Garcia contou que viu e ouviu “com espanto e tristeza sobre a venda da Santa Casa, que há mais de 200 anos atende a todos, independentemente de classe social”. Garcia, também vizinho do bairro, considerou a ação como “puro descaso dos poderes constituídos que, ao invés de procurarem uma forma de salvar esse patrimônio histórico e de utilidade pública, preferem o modo mais fácil: lavar as mãos sobre o assunto”.
Devido ao valor cultural e histórico, a fachada da Santa Casa de Cuiabá foi tombada em 8 de junho de 1998. Fundada como hospital filantrópico, a unidade passa por mais uma crise financeira dentre outras já enfrentadas no decorrer de seu funcionamento. Em 2019 chegou a fechar as portas por causa de salários atrasados dos funcionários.
Foi nesse ano que o governo passou a administrá-la, transformando a Santa Casa em um hospital estadual e demandando recursos pelo uso do imóvel. Agora o governo quer deixar de gerir a Santa Casa e pretende desativar seus serviços, sob o argumento de que o novo Hospital Central de Cuiabá abarcará os atendimentos de saúde na cidade.
O governador Mauro Mendes afirmou publicamente que o estado não vai manter duas unidades fazendo a mesma coisa na capital. “A Santa Casa não é patrimônio do governo e o prédio demanda manutenção caríssima. Se o município quiser, que manifeste interesse”, declarou.
Neste julho passado, a Câmara de Cuiabá realizou uma audiência pública para tratar do assunto. Por sua vez, representantes da sociedade civil organizaram um abraço simbólico em frente à Santa Casa com o intuito de sensibilizar as autoridades públicas e evitar a desativação da unidade, com 400 leitos.
Paralelamente a essas manifestações, o TRT avançou seus trâmites, lançando o edital do leilão do imóvel. O estado também seguiu com sua irrevogável decisão e não há sinais de intervenção da União nem do município para mudar o destino da Santa Casa.
Assim como eu, os vizinhos do Mundéu estão na torcida para que aflore nos governantes alguma sensibilidade e compromisso com o nosso patrimônio. A Santa Casa, seu prédio histórico e serviços precisam ser preservados!
*Os textos das colunas e dos artigos são de responsabilidade os autores e não refletem necessariamente a opinião do eh fonte.
Compartilhe
Assine o eh fonte
Tudo o que é essencial para estar bem-informado, de forma objetiva, concisa e confiável.
Comece agora mesmo sua assinatura básica e gratuita:


