Brecha na lei acende conflito entre MP e PMs em caso de leilão de madeira

Por Fátima Lessa
A ação civil pública proposta pelo Ministério Público de Mato Grosso (MPMT) contra três policiais militares de Feliz Natal (MT) reacendeu a discussão sobre a legalidade dos leilões de madeira apreendida na região. Embora exista previsão legal para a doação desse material e autorize o leilão, não há norma que detalhe como o procedimento deve ser realizado. Essa lacuna, reconhecida por policiais, empresários e juristas, cria práticas diferentes entre comarcas e abre espaço para interpretações divergentes.
É nesse contexto que o caso de Feliz Natal ganha destaque. O MP sustenta que 259 m³ de madeira apreendida foram desviados “por meio do Grêmio dos Policiais Militares, em uma suposta venda fraudulenta”, com uso de conta pessoal, pagamento sem licitações, ausência de edital e inexistência de orçamentos de frete. A acusação também afirma que o grêmio teria sido criado duas semanas antes do leilão “para simular legalidade”.
Segundo o promotor Daniel Luiz dos Santos, apenas 129 m³ das toras foram localizadas posteriormente, e o lote teria sido vendido por valor abaixo do mercado. Ele afirma ainda que parte da madeira jamais foi encontrada e que normas administrativas deveriam ter sido seguidas.
É justamente nesse ponto que surgem as divergências. “Isso de licitação e publicação de edital nunca foi feito nem antes nem depois, e em nenhuma cidade perto de Feliz Natal”, afirmam policiais e empresários da região ouvidos pela reportagem. Eles argumentam que não existe norma clara sobre como devem ser realizados leilões de madeira apreendida e que o MP não apresenta e nunca apresentou exemplos de procedimentos exigidos em situações semelhantes.
Policiais e empresários da região contestam. Alegam que “licitação e publicação de edital nunca foram exigidas antes nem depois” em Feliz Natal ou em municípios vizinhos, e que o MP não apresenta exemplos de casos semelhantes em que tais procedimentos tenham sido adotados. Defendem que não existe norma clara sobre como realizar leilões de madeira apreendida.
Vácuo Normativo: A legislação prevê doação e leilão, mas não define regras para execução.
Criação do grêmio: tratativas antes da apreensão
O MP afirma que o grêmio foi criado para dar aparência de legalidade ao leilão. Mas mensagens de WhatsApp, registradas em Ata Notarial, mostram que o promotor tinha conhecimento do processo meses antes.
Em 17 de maio de 2024, o capitão Ismael Rodrigues de Assis informou ao MP que havia recebido autorização para desenvolver um projeto social de judô, e que a associação estava sendo formalizada pela contadora Dirce Moro. Ao saber da criação do grêmio, o promotor reagiu com surpresa: “Vocês criaram uma associação para isso? Para tocar o projeto?” Ao receber explicações, respondeu apenas: “Legal”.
As tratativas ocorreram quatro meses antes da apreensão da madeira que originaria a ação.

Mensagens de conversas entre o promotor e o capitão da PM
A diferença da medição
A diferença entre os 259 m³ medidos pela Polícia Militar Ambiental e os 129 m³ encontrados pela Delegacia Especializada de Meio Ambiente (Dema) tem explicação técnica. Policiais e empresários afirmam que a divergência decorre do método de medição: a PM Ambiental mede base e ponta da tora; já o mercado mede apenas a ponta, mais fina e de onde sai a madeira aproveitável.
Toras ocadas (“ocos”) também são desconsideradas no cálculo comercial. Por isso, enquanto a medição oficial apontou 259 m³, o volume comercial resultou em 180 m³. Imagens mostram troncos com partes ocadas e trechos brancos no pátio do quartel de Feliz Natal.
Acusação do MP e contestação
A ação, proposta em julho de 2025, tramita na Comarca de Feliz Natal e pede julgamento antecipado. O MP requer condenação por improbidade com base nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei de Improbidade Administrativa, com penas de perda da função pública, multa civil, ressarcimento e proibição de exercer cargo público. O pedido se sustenta, principalmente, na suposta diferença de medição das toras e no alegado prejuízo ao erário.
A defesa do capitão Assis afirma que a acusação é genérica e sem base fática ou jurídica. Segundo o advogado João Paulo Maia Oliveira, não há qualquer ato ou decisão que configure fraude, desvio ou dano ao erário. Lembra que a Lei nº 14.230/2021 exige comprovação de dolo específico para improbidade – intenção que, segundo ele, “jamais existiu”, e que as provas demonstram transparência em todas as etapas.
Operação Ronuro e início do processo
A madeira foi apreendida pela Polícia Militar Ambiental na Reserva Ecológica do Rio Ronuro, em Ubiratã, na primeira quinzena de agosto de 2024. Além das toras, houve apreensão de uma moto, um trator e prisão de quatro homens.
Sem meio para retirar a madeira da mata, a Ambiental consultou o comando da PM em Feliz Natal, que por sua vez buscou orientação do MP. Nas mensagens, o tenente-coronel Costa e Silva orienta a consultar o promotor sobre a possibilidade de doação ao grêmio. Em 9 de setembro, ao ser informado de que o estatuto estava registrado e o CNPJ solicitado, o promotor respondeu: “Tendo CNPJ, não vejo problemas”.
Doação, transporte e leilão
A doação foi formalizada em 13 de setembro de 2024. O leilão ocorreu em 26 de setembro. O capitão Assis teria buscado orientação com o presidente do Conseg de Sinop, Aluízio Barros, que já tinha ampla experiência em leilões de madeira doada.
Barros confirmou a solicitação, e na sua avaliação o oficial acabou sendo ingênuo. “Na pressa de reformar o quartel, construir a sede da PM e tocar o projeto social, tomou decisões aceleradas” e isso, segundo ele teria “contrariado interesses locais e motivado denúncias ao MPE”.
O transporte levou cinco dias, com dois caminhões e duas pás carregadeiras, sempre acompanhados pela Ambiental. As toras permaneceram mais de duas semanas no pátio do quartel para medição.
O lote foi arrematado por R$ 120 mil. O frete foi calculado a R$ 200 por metro cúbico (medição comercial de 180 m³), totalizando cerca de R$ 36 mil. O responsável pela medição não participou da compra.
A pressa para realizar o leilão, segundo os policiais, se deveu ao risco de desvalorização: “quanto mais tempo a madeira fica no chão, mais perde valor”. A intenção era aproveitar o momento em que o material ainda tinha preço comercial.
Conversas e orientações do MP
As mensagens registradas em Ata Notarial também mostram que o promotor tratou de outras vendas de madeira apreendida, sem exigir edital. Em uma delas, escreveu:
“Peço para as telefonistas falarem com as madeireiras da cidade, ver se fazem uma proposta. Preferência para proposta à vista”.
Em outro caso, enviou oferta de R$ 20 mil para um lote avaliado entre R$ 33 mil e R$ 36 mil, proposta recusada pelo capitão, que disse ter três interessados e que venderia “pelo valor da avaliação”.
Mesmo sabendo que o Conseg estava impedido de realizar leilões por recomendação do próprio MP, o promotor perguntou em agosto: “O Conseg vai fazer o leilão ou a associação?”.
Também orientou sobre o cadastro no Sisflora, explicando como seria o alvará judicial e o lançamento do crédito no sistema Siga.com. Todas as conversas foram registradas em Ata Notarial pelo Cartório do Segundo Ofício de Vera.
O promotor
Em nota, o promotor afirma que o comando da PM em Feliz Natal havia solicitado orientações à Promotoria, mas que “as orientações não foram seguidas, não havendo a ampla divulgação do ‘certame’ simulado”. Ele acrescenta que a criação do Grêmio “nada teria de ilegal”, porém “posteriormente verificou-se que a entidade foi utilizada para acobertar atividade ilícita”.
Ainda segundo o promotor, conforme registrado na ação civil pública, “as madeiras questionadas foram ‘leiloadas’, em leilão simulado, às pressas, ignorando-se outras que aguardavam, há meses, o devido leilão”. A nota finaliza destacando que “a ação está sub judice, e quaisquer questionamentos que possam ser feitos, na vertente defensiva, serão devidamente apreciados pelo Poder Judiciário, no momento oportuno”.
*Fatima Lessa é jornalista em Cuiabá, colaboradora do eh fonte
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