Trabalhador some na Amazônia; 20 anos depois, família ainda busca Justiça

Por Adriana Mendes
“Eu coloquei no meu coração que eu ia seguir em frente na Justiça porque eu queria limpar o nome do meu pai, que não ficasse manchado como um ladrão, porque ele não era”, desabafa Hyorrana Santos, de 29 anos, fisioterapeuta, que hoje mora em Salvador, na Bahia. O caso do pai desaparecido, enquanto trabalhava para uma cooperativa na floresta Amazônica, é complexo e cheio de reviravoltas.
Um promotor público do Pará, que foi ameaçado de morte, é testemunha de um período nos anos 2000 em que centenas de trabalhadores “sumiram” na floresta. Apenas este caso acabou na Justiça, porque a família nunca desistiu.
Hyorrana tinha apenas seis anos quando o pai, o trabalhador Antônio Carlos Santos, não voltou mais para casa. A família mora em Tangará da Serra, interior de Mato Grosso, de onde ele foi recrutado por Wilson Rotta, um fazendeiro que o levou para trabalhar na cooperativa Comajal, em Novo Progresso (PA). A região é marcada pela extração ilegal de madeira, conflitos fundiários e violência, e está entre os municípios que mais desmataram a Amazônia nos últimos dez anos.
A mulher de Antônio Carlos e mãe de Hyorrana, dona Olivete, hoje com 62 anos, nunca aceitou a versão do desaparecimento. Ela contou que quando o marido estava trabalhando fora, entre os anos de 2001 e 2003, o contratante ia em sua residência levar o pagamento à família. Mas chegou um dia, quando não estava em casa, Rotta foi lá e disse à filha mais velha: “Você sabe que o seu pai desapareceu? Seu pai largou tudo no serviço e fugiu com uma mulher. Já tem até um filho grande com ela”, relatou, relembrando o difícil período que passaram.
Ainda segundo dona Olivete, o contratante voltou depois dizendo que o marido tinha roubado um trator. Cada vez contava uma versão diferente. Ela questionava.
“Mas como assim roubar um trator? Não entendo. Ninguém viu nada? Ninguém fez nada?”
Nunca acreditou nas versões apresentadas.
“Eu sabia, sentia que era mentira”, afirmou, emocionada. A partir daí, começou a ligar na cidade em busca de informações, descobriu que havia uma investigação e passou a telefonar para a Promotoria de Justiça pedindo providências sobre o sumiço do marido.
Sem perder a esperança, com a ajuda de amigos, conseguiu viajar a Novo Progresso. Encontrou uma cidade marcada pelo medo e pelo silêncio. Voltou apenas com alguns comprovantes de pagamento da empresa, sem qualquer esclarecimento sobre o caso. Mas então conheceu o promotor Nadilson Portilho, que investigava os desaparecimentos de trabalhadores na região.
Cem desaparecidos
O desaparecimento de Antônio Carlos não foi um caso isolado. Ele integra uma lista de mais de cem trabalhadores que sumiram em circunstâncias semelhantes, segundo o promotor. Vítimas com os mesmos perfis, pessoas muito pobres, sem escolaridade, sem documentos, com familiares que nem sabiam que estavam lá, que foram em busca de trabalho e de melhores condições de vida. Eram cooptados por “gatos” (aliciador de trabalhadores) e acabavam morrendo.
“Cabe uma redenção, e cabe um dever do poder público de apurar cada morte ocorrida sem satisfação, sem que houvesse uma apuração mínima”, afirma o promotor Nadilson Portilho.
A diferença do caso do Antônio é que ele tinha família.
“A sra. Olivete nunca acreditou que ele deixaria de falar com ela. Quando ele deixou de entrar em contato, ela já estranhou. Nos demais casos, mortes e desaparecimentos, não apareceu ninguém procurando”, relata o promotor.
Na época, o promotor constatou um grande número de procedimentos policiais em que trabalhadores dessa madeireira desapareciam ou eram encontrados mortos na floresta. “Diante disso, passei a fazer levantamento dos casos, os quais guardam similaridade. No geral, quando recebiam ou iriam receber os pagamentos sumiam ou morriam na floresta por acidente, supostamente árvores caíam na cabeça dos mesmos. Absolutamente, dada a ocorrência frequente, aquilo não parecia ser normal”, contou.
Em relação ao caso de Antônio, a empresa chegou a registrar um boletim de ocorrência na delegacia acusando o trabalhador de furto de um trator. O caso foi investigado, mas toda a documentação acabou destruída em um incêndio. Portilho afirma que a empresa apresentou versões contraditórias, sempre transferindo a responsabilidade para a vítima. A Justiça, porém, reconheceu que Antônio atuava em ambiente de risco e que a empresa não adotou medidas para resguardar sua integridade.

Antônio Santos com a irmã de Hyorrana/ Foto: arquivo da família
Processo por décadas
O primeiro processo previdenciário, para pensão por morte, se arrastou na Justiça e acabou prescrito e não houve indenização. Olivete nunca desistiu. A advogada Wanessa Franchini foi procurada pela família em 2013, e começou a tratar o caso na esfera trabalhista, argumentando que seu Antônio estava trabalhando quando desapareceu.
A sentença de morte presumida só foi dada em 2021, porque, pela lei, esse tipo de decisão judicial exige um processo específico, que geralmente é lento e depende de indícios fortes de que a pessoa não voltará mais. A Justiça fixou como data da morte o próprio dia do desaparecimento.
A ação foi protocolada em Mato Grosso, onde ocorreu a contratação do trabalhador, e teve como réus Wilson Rotta e a Cooperativa Comajal. Após mais de uma década de disputas judiciais, o processo foi vitorioso em primeira instância. Em julho de 2025, o Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região condenou o fazendeiro a pagar uma indenização de R$ 150 mil reconhecendo o sofrimento da filha. Os réus, no entanto, recorreram, e o processo está atualmente no Tribunal Superior do Trabalho (TST) aguardando julgamento final.
Dignidade do pai
Para a filha Hyorrana, a expectativa pelo julgamento final é um misto de esperança e dor.
“Não sou muito de falar sobre o assunto porque é uma coisa que ainda me machuca”, desabafa. Ela revela ter pensado “várias vezes em desistir”. Já recebeu duas propostas do fazendeiro para encerrar o processo, uma delas por R$ 750 mil.
Sua motivação para seguir em frente veio da persistência da mãe, Dona Olivete, e do apoio do promotor Nadilson, que ela nunca chegou a conhecer pessoalmente.
Para Hyorrana, o fim do processo representará um ponto final de dignidade.
“Meu pai foi tratado como ladrão, e eu só quero limpar seu nome”, afirma a fisioterapeuta.
Outro lado
No processo, a defesa tenta desconstruir o direito da filha, alegando ilegitimidade e prescrição. Também nega a existência de vínculo empregatício e busca afastar a responsabilidade pelo suposto “acidente de trabalho”. Além disso, pede a redução dos valores de indenização e a anulação de atos processuais. Procurados, os advogados de Wilson Rotta e da cooperativa Comajal não responderam à reportagem.
O fazendeiro ainda é proprietário de áreas em Novo Progresso. No ano passado, foi multado duas vezes por desmatamento ilegal e, somadas, as multam chegam a R$ 10,3 milhões. Ele também acumula outras autuações aplicadas pelo Ibama e pelo ICMBio, atualmente embargadas.
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