Eunices em defesa da ciência e das mulheres

Foto: plataforma Eunice/reprodução
Hoje uso este espaço para falar dos feitos de algumas Eunices merecedoras de crédito na ciência, na política, nos direitos humanos e na defesa da natureza. A primeira é a plataforma batizada com este nome, lançada recentemente pelo Observatório do Clima que fala das mudanças climáticas de uma forma simples, organizada e com informações confiáveis.
O conteúdo, que traz textos, gráficos e ilustrações, pode democratizar o acesso e o aprofundamento do conhecimento sobre este tema vital e que exige soluções urgentes. Um mapa indica os principais temas relacionados à questão. São 14 capítulos divididos em blocos temáticos, como agropecuária, energia, efeito estufa, aquecimento global, impactos do clima na economia e na política, negociações internacionais, Acordo de Paris e geoengenharia. Tudo está disponível para download gratuito.
De cara, percebi sua utilidade e fiquei curiosa com o nome Eunice. Vi que é formado pelas iniciais do nome do projeto: Espaço Unificado de Informação Climática e Engajamento. E que, propositalmente, é uma homenagem à inventora e cientista amadora norte-americana Eunice Newton Foote (1819-1888), que foi pioneira na descoberta, há 169 anos (1856), da relação entre o aumento dos níveis de dióxido de carbono na atmosfera e o aquecimento do planeta, o que acabou conhecido como efeito estufa.
Este pioneirismo feminino, porém, quase passou batido na historiografia da ciência. Não por acaso quem conquistou fama foi o cientista John Tyndall que apresentou em 1859 – três anos depois de Eunice Foote – estudos que identificavam os gases responsáveis pelo efeito estufa, como vapor d’água, metano e dióxido de carbono.
Somente na década de 1970 é que o trabalho e a trajetória de Eunice Foote foram estudados com rigor e os pesquisadores conseguiram repor a verdade sobre o papel dela na ciência climática, como inventora e ainda como uma importante ativista pelos direitos das mulheres.
Aqui a coluna faz conexão com outra Eunice e a sua atuação pioneira na política brasileira e na defesa da emancipação feminina. Eunice Michiles, uma ex-professora primária que já tinha sido vereadora e deputada estadual pelo Amazonas, foi a primeira mulher a chegar ao Senado Federal em 1979 – isso quando a Casa já funcionava há 153 anos!
Na cerimônia de posse, foi recebida com rapapés, flores, chocolate e poesia, mas no decorrer dos oito anos de mandato não conseguiu apoio dos colegas aos projetos em defesa dos interesses das mulheres.
Eunice Michiles era filiada à Arena, o partido de sustentação da ditadura militar, mas como senadora denunciou o machismo e construiu uma agenda que buscava melhorar a vida das mulheres. “Vou procurar trazer a óptica feminina à análise dos problemas brasileiros”, prometeu em seu discurso de posse. “Somos fruto de uma cultura patriarcal e machista, onde a mulher vive à sombra do homem e rende obediência ao pai, ao marido ou, na falta deste, ao filho mais velho. Em 1979, temos muito a melhorar”.
A primeira senadora brasileira propôs eliminar do Código Civil o artigo que dava ao homem o direito de anular o casamento e devolver a mulher aos pais se descobrisse que ela não era virgem. Outro projeto permitia que a mulher com filhos fizesse uma jornada de trabalho menor, com redução proporcional no salário. Em outro, atacava o conceito de homem “cabeça” do casal e propôs eliminar a possibilidade de o homem casado em comunhão de bens tomar empréstimos e, sem o consentimento da mulher, dar como garantia o patrimônio da família. Iniciativas que não tiveram respaldo dos colegas, todas foram reprovadas.
E, mesmo como senadora da República, Eunice Michiles não escapou de assédio moral. Durante uma palestra em uma entidade empresarial ela foi interrompida pelo presidente que a acusou de tratar de “assuntos secundários”, como o planejamento familiar, e disse que a mulher estaria em pé de igualdade com o homem somente quando conseguisse discutir temas como energia nuclear.
Hora de entrar em cena outra Eunice, de sobrenome Paiva, que ficou conhecida no Brasil e no mundo pelo filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles, inspirado no livro de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice e Rubens Paiva, ex-deputado torturado e morto pelo aparato da ditadura militar brasileira e cujo corpo ainda está desaparecido.
A luta de Eunice durante décadas foi para que o Estado reconhecesse oficialmente que era o responsável pela morte e sumiço do corpo de seu marido, assim como de centenas de outros desaparecidos por razões políticas. A advogada e ativista tornou-se símbolo de resistência contra a ditadura, defensora dos direitos humanos e dos povos indígenas. Em sua homenagem, a Advocacia-Geral da União instituiu o “Prêmio Eunice Paiva de Defesa da Democracia”.
Estas três mulheres, divididas por mais de dois séculos de história, têm os mesmos nomes por pura coincidência, mas suas trajetórias são marcadas, em muitos aspectos, pela luta contra o machismo, o autoritarismo e o apagamento das lutas e conquistas femininas, o que, de resto, tem se repetido com as mulheres em geral.
É preciso, mesmo que tardiamente, reconhecer os legados e garantir espaço para essas mulheres na memória coletiva. E o Observatório do Clima, ao se inspirar em Eunice Foote para dar nome ao site que aglutina informações sobre as mudanças climáticas e seus impactos, faz justiça à cientista cuja obra foi negligenciada por tanto tempo. E que a plataforma seja útil para quem busca se informar e se posicionar em um momento tão desafiador para todos que dividimos a vida no mesmo planeta.
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