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Francisca Medeiros

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Primavera silenciosa

Este é o nome do livro escrito em 1962 pela bióloga norte-americana Rachel Carson para denunciar o uso indiscriminado de pesticidas químicos e a sua relação com o adoecimento de animais, pessoas e com a contaminação ambiental. Agora, 62 anos depois deste alerta, a primavera chegou, neste domingo, cinzenta e sufocante. Não foi recebida com as tradicionais flores, chuva e o canto dos pássaros.

As causas são muitas, certamente, e a maioria está ligada a uma longa e persistente trajetória de desrespeito ao meio ambiente. Uma trajetória que muita gente considera que começou a ser descrita em Primavera Silenciosa, obra importante para o início do movimento ecológico na década de 1970. A linguagem de Carson, carregada de poesia, descreve o ciclo natural de vida das espécies, da lógica da cadeia alimentar e de como as decisões humanas podem desequilibrar tudo.

O foco de Carson, à época, era o uso de pesticidas potentes e sem controle, com relatos inéditos da mortandade de peixes, aves e pessoas. Mas ela foi além e trouxe conceitos de ética ambiental e da necessidade de o homem não se colocar em guerra contra a natureza.

O livro chegou ao Brasil em 1964 e foi considerado, em parte, exagerado, alarmista, porque a autora alertava que os pesticidas poderiam ser tão perigosos quanto a bomba atômica. Era um conflito com o senso comum da época de que os pesticidas orgânicos, entre eles o DDT, eram inofensivos e indispensáveis para o aumento da produção agrícola.

Na Segunda Guerra estes venenos tiveram papel sanitário no controle de vetores do tifo e da malária e, depois, seu uso foi adaptado para o controle das pragas agrícolas que ameaçavam a segurança alimentar. Sem, porém, qualquer alerta de que seu uso poderia trazer outros riscos. De lenta degradação e metabolização, eles têm efeito cumulativo ao longo da cadeia alimentar. As propagandas dos anos 1940 e 1950 destacavam, porém, que eles só atingiam os insetos. Havia até anúncios de pessoas comendo DDT e de crianças cantando ciranda em homenagem ao veneno!

A intenção aqui não é somente fazer a analogia das duas primaveras, a imaginada por Carson e a real, neste setembro de 2024. O principal objetivo é valorizar a ciência e o papel da divulgação científica na defesa dos interesses da sociedade. Primavera Silenciosa vendeu muito bem porque a cientista era também uma competente escritora e tratou de um assunto complexo em linguagem simples, acessível aos leigos. E, por estas razões, o livro continua um best seller traduzido para dezenas de línguas e que continua a ser reeditado.

A ciência, quase sempre, é a primeira a alertar para o risco de produtos e processos para a saúde, o meio ambiente e as diferentes formas de vida. E, com a amplificação dada pelos meios de comunicação, aliada ao trabalho de entidades, parlamentos e governos, consegue-se, por vezes, enfrentar grupos econômicos que querem se manter hegemônicos, mesmo que, para isso, se contraponham aos interesses da sociedade.

Nas últimas décadas, há exemplos de conquistas positivas no Brasil que se tornaram possíveis por causa da ciência. Um deles foi o banimento do uso dos CFCs, os clorofluorcarbonetos, que destroem a camada de ozônio. Eles eram largamente usados nos sistemas de refrigeração doméstico, industrial e de carros, em espumas, aerossóis, solventes, nas bombinhas para quem tem asma. Um plano aprovado em 2002 previu a proibição total no país até 2010 e a substituição por outras substâncias menos nocivas.

Todos os elos da cadeia foram envolvidos no planejamento. O governo agiu por meio dos ministérios do Meio Ambiente e Saúde; o Ibama e a Anvisa, no controle de importações. Em sintonia, o Congresso Nacional mudou a legislação e, para dar suporte à indústria, houve financiamento para a inovação tecnológica.

Foi também importante a ampla divulgação pela imprensa. Os setores organizaram audiências públicas, seminários, confeccionaram materiais de divulgação e manuais que explicavam as soluções que viriam com o banimento dos CFCs.

Sob liderança do PNUD, a agência da ONU para o desenvolvimento, e com a cooperação da Alemanha, foi criado um fundo de US$ 26,7 milhões para implementação das medidas. Técnicos em refrigeração foram treinados pelo Senai e o pessoal da Receita Federal e do Ibama foi capacitado para o controle das importações. Paralelamente, a indústria química inovou e os CFCs foram substituídos pelos HCFCs e HFCs, que causam danos bem menores à estratosfera.

Outro exemplo é o cerco ao amianto, uma fibra que era usada na fabricação de telhas e caixas d’água, proibida no Brasil desde 2017, mas que ainda é exportada. Há um movimento de cientistas e de órgãos e entidades ligados à saúde do trabalhador e ao meio ambiente que luta pelo banimento definitivo do amianto e pelo fechamento da mina em Minaçu (GO).

A exposição a esta fibra está associada à ocorrência de câncer de pulmão e ao mesotelioma maligno, que atinge tecidos de revestimento de vários órgãos. O STF deve julgar, a qualquer momento, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho que questiona uma lei do estado de Goiás que autoriza em seu território a extração e o beneficiamento do amianto crisotila para exportação.

Outras substâncias que estão sob observação crítica são os parabenos, conservantes utilizados nas indústrias farmacêutica, cosmética e de higiene e limpeza. Apesar de a Anvisa considerar que o uso é seguro em determinadas concentrações, há estudos recentes que alertam para possíveis riscos de o uso contínuo provocar doenças da pele, desregulação endócrina, além de impacto ambiental negativo sobre a fauna aquática. Neste caso, cabe ao consumidor escolher produtos livres de parabenos, observando selos, rótulos e lendo as listas de ingredientes.

Em tempo: só depois de 47 anos da publicação de Primavera Silenciosa, é que o Brasil baniu o DDT em seu território. Neste período, pelo menos três gerações de brasileiros conviveram com o perigo do desenvolvimento de doenças neurológicas e câncer, sem que recebessem qualquer alerta. Na minha infância, ainda vi muita gente usando as mãos desprotegidas no preparo da calda do inseticida.

Ainda bem que o pioneirismo de Rachel Carson como divulgadora científica fez seguidores com os quais continuamos a aprender sobre tantas áreas. Um deles foi o paleontólogo e historiador da ciência, Stephen Jay Gould, que escreveu livros apaixonantes sobre a evolução biológica. E para além dos livros, outros trouxeram a ciência para mais perto usando a tevê, o rádio, os jornais e as revistas. Quem, com mais de 50, não se fascinou com a série Cosmos, do astrônomo Carl Sagan, no início dos anos 1980? Atualmente, os documentários do ambientalista e naturalista britânico David Attenborough mostram como nosso lindo Planeta está sob ataque.

Deixo uma listinha para quem tem curiosidade em acompanhar mais sobre divulgação científica: revistas Ciência Hoje digital, Superinteressante, National Geografic, Scientific American, Revista da Fapesp, as colunas de jornal de dois Marcelos, o Gleiser e o Leite, e o trabalho da jornalista Luiza Caires, editora de ciências do Jornal da USP.

E, na era dos influencers digitais, muita gente trabalha com ciência de forma séria e com linguagem leve. Acompanho a física Bibi Bailas (canal Física e Afins), Mari Krüger, o biólogo Átila Iamarino (canal Nerdologia), Canal Peixe Babel, Nunca Vi 1 Cientista, o podcast Dragões de Garagem, Manual do Mundo, Ciência Todo Dia.

Para encerrar, percebo o silêncio deste início de primavera como um grito eloquente de pedido de socorro da natureza. Faz tempo que os cientistas ecoam esta emergência, mas falta às instâncias de poder ouvir e dar as respostas necessárias. Quero de volta as primaveras vigorosas, cheias de vida com a típica algazarra dos pássaros. E quem não quer?

* Os textos das colunas e dos artigos são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião do eh fonte.

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