Pulmão tatuado’ não quero!
A expressão ‘pulmão tatuado’ era novidade para mim até há poucos dias. Descobri que este é o nome que os pneumologistas dão ao problema que pode surgir depois da exposição à poluição atmosférica extrema e que aparece na forma de pontos escuros no pulmão. Essa poderá ser uma herança para todos que vivemos estes dias em que respirar virou quase sinônimo de se envenenar. É como se todos tivéssemos passado a fumar alguns cigarros por dia.
E nem adianta invocar minha militância antitabagista para ser poupada. O fato de estar respirando fuligem me credencia a ter o pulmão marcado para sempre. Tenho, inclusive, me lembrado das aulas de ciências lá pelo fim do ginásio com as imagens dos pulmões afetados pelo tabaco. A perspectiva era tão sombria que preferi manter distância dos cigarros por toda a vida.
O medo cumpriu seu papel didático diante da imagem do pulmão escuro do fumante com alvéolos esburacados, com a arquitetura toda bagunçada. A pá de cal veio com o temor da perda de elasticidade no inspire-expire, dos riscos trazidos pelas 4 mil e 700 substâncias tóxicas, da dependência e do pigarro chato.
Todo esse zelo de não fumante convicta caiu por terra nesses tempos nebulosos. Involuntariamente, tornei-me uma fumante passiva ao inalar a fumaça das queimadas, algo equivalente a quatro ou cinco cigarros por dia. O corpo reage à exposição ao ar de péssima qualidade com dor de cabeça, irritação, olhos secos, desânimo.
Mato Grosso está no epicentro da fumaceira e, mesmo assim, não há medições regulares e oficiais da qualidade do ar, que serviriam para avaliar as consequências para as pessoas e o meio ambiente, como já abordei na coluna anterior. Procurei algumas medições mais próximas para ter ideia, por comparação, da situação daqui. Em Campo Grande (MS), a estação de monitoramento da UFMS registrou, na última sexta-feira, 156 PM 2.5, considerada qualidade ‘muito ruim’. Como parâmetro, a Organização Mundial de Saúde (OMS) preconiza o limite da média anual de partículas em suspensão de 5 PM.
Em Corumbá e Ladário, no pantanal sul-mato-grossense, o nível chegou a 448 PM 2.5 na semana passada, 46 vezes mais do que as médias em Bangladesh, o país com o ar mais poluído do mundo, conforme dados da World Air Quality. E do lado mato-grossense da planície, as condições estão, infelizmente, semelhantes.
Essa medição é das partículas sólidas com menos de 2.5 micrômetros de tamanho, pequenas o suficiente para serem inaladas e entrarem na corrente sanguínea, permanecendo no corpo por meses após a exposição, causando problemas de saúde imediatos e crônicos.
Este material particulado menor (PM 2.5) tem potencial inflamatório no corpo. Os impactos das diferentes formas de poluição do ar – incluída a PM 2.5 – na saúde planetária têm um custo estimado de US$ 8,1 trilhões, equivalente a 6,1% do PIB global, segundo um estudo publicado pelo Banco Mundial.
No ‘pulmão tatuado’ os pontos pretos que aparecem nos exames são o depósito de material particulado e metais pesados que provocam uma reação inflamatória, com danos que podem ser irreversíveis. Pode haver inflamação sistêmica do corpo, danos cardiovasculares, arritmias, aumento dos riscos de derrames ou infartos em quem tem essa propensão. E quanto mais exposição, mais pontos pretos se formam.
O fenômeno é mais um indício de que as mudanças climáticas são uma das maiores ameaças à saúde humana. O que indica a necessidade da discussão envolver as áreas de saúde e clima, de forma transversal. A OMS e a Organização Meteorológica Mundial (OMM) já articulam a necessidade de criação de sistemas de alerta de clima e saúde em todo o mundo, com informações para nortear, nas emergências, as pesquisas, as ações das autoridades e da sociedade civil.
No Brasil foi criado há 15 anos o Observatório de Clima e Saúde, um modelo que pode inspirar outras iniciativas no mundo. Ele reúne, analisa e disponibiliza um grande conjunto de dados e estudos e é integrado pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict), a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Inpe, Fiocruz, com parceria da Secretaria de Vigilância em Saúde/SUS.
O Observatório já se dedicou em profundidade a desastres ambientais como o de Brumadinho, Mariana, as queimadas na Amazônia de 2019, a pandemia da covid 19 e as enchentes do Rio Grande do Sul.
Além da qualidade do ar muito ruim, o combo atual que fragiliza a saúde e compromete o bem-estar ainda tem altas temperaturas e baixa umidade relativa do ar. Uma situação grave que levou a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia a divulgar, nas últimas três semanas, dois comunicados orientativos para a esfera pública, os grupos de risco (idosos e crianças, entre eles) e para as pessoas saudáveis.
A entidade orienta, para quem puder, evitar sair de casa e se manter em ambientes fechados, com uso de ar condicionado com filtro, circuladores e refrigeradores de ar. Alerta também para o risco do calor extremo que pode provocar estresse térmico, com potencial de levar à exaustão pelo calor, insolação, com desidratação e risco de morte.
Em ambientes abertos, a orientação é o uso da máscara PFF2 ou N95, que oferece mais proteção, ou mesmo as de pano ou descartáveis. Ao sair de carro, manter janelas e aberturas de ventilação fechadas e deixar o ar-condicionado em modo ‘recirculação’ – isso se a viagem for de curta duração.
A melhora imediata virá com a volta das chuvas e o fim das queimadas. E, de forma duradoura, com o rigoroso respeito ao meio ambiente e ao funcionamento dos ecossistemas, sem desmate e incêndios sem controle.
A nova e indesejada tatuagem nos pulmões dos ‘fumantes passivos’ poderia servir também de impulso para a indignação e a cobrança, a quem de direito, do livre direito de todos aos dois mais importantes componentes da vida: água limpa para beber e ar puro para respirar.
* Os textos das colunas e dos artigos são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião do eh fonte.
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