COLUNA

Adriana Mendes

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Informações de política, judiciário e meio ambiente.

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Um livro sobre Arcanjo

Foto: MidiaNews

A história do Comendador João Arcanjo Ribeiro é digna de um livro e daria um excelente roteiro para uma minissérie na Netflix. O ex-policial civil de Mato Grosso subiu na vida como agiota e teve um cassino clandestino em Cuiabá (MT) frequentado por autoridades e a alta sociedade.

Nas décadas de 80 e 90, as barraquinhas da empresa Colibri estavam espalhadas pelas ruas da capital e do interior do estado. O jogo do bicho tinha endereço e até divulgava o resultado do sorteio diário na programação das rádios. Havia um poder paralelo nos bastidores que fazia com que as autoridades públicas ignorassem todo aparato ilícito. Operava fortemente no ramo de factoring – que adquire créditos por um valor à vista e mediante taxas de juros.

A reviravolta começou com a publicação de reportagens no jornal Folha do Estado. Na edição de 14 de maio de 2001, Arcanjo foi chamado de “Al Capone de Mato Grosso”. Em setembro de 2002, Sávio Brandão, o dono do jornal, foi executado em frente à obra da futura sede do impresso.

O crime é apontado como o ápice da era Arcanjo. Na época, eu trabalhava na TV Centro América, afiliada da TV Globo em Cuiabá. Ocorreram depois outros assassinatos e daí foi sendo revelado esquemas de empréstimos a políticos e denúncias de lavagem de dinheiro da Assembleia Legislativa de Mato Grosso. Cobri o caso produzindo várias reportagens.

Pairava um medo na sociedade em geral, inclusive na imprensa. Arcanjo, que comandava o jogo do bicho, passou a cobrar “royalties” de outros contraventores que instalavam máquinas de caça-níqueis em Mato Grosso. A briga por espaço foi ficando pesada. Naquele período, um fotógrafo disse que não tiraria foto do bicheiro porque Arcanjo “iria matá-lo”. Hoje pode parecer hilário, mas era real, as pessoas tinham medo.

Só que, ainda em 2002, o bicheiro “intocável” caiu na Operação Arca de Noé. O Comendador fugiu e só foi preso um ano depois, no Uruguai. A extradição ocorreu apenas em 2006. Condenado, passou 15 anos atrás das grades, sendo dez anos em presídios federais. Foi solto em 2018 depois de cumprir um sexto da pena. Atualmente, não usa mais tornozeleira eletrônica e cumpre prisão domiciliar por ter mais de 70 anos.

Paulo Fabrinny, advogado de Arcanjo, critica a condução dos processos na Justiça e diz que o cliente não teve um julgamento justo. Ele faz acusações graves e garante que as provas estão nos autos do processo. Segundo ele, houve manipulação na distribuição das ações para cair em juízes específicos. “O processo do Lula comparado com o de Arcanjo é pinto”, afirma, citando que houve um extenso número de nulidades na Justiça. Na avaliação de Fabrinny, a prisão do bicheiro se deu “pelos interesses escusos” de pessoas que queriam vê-lo atrás das grades. “Ironicamente, uma pessoa que sempre mexeu com jogo entrou em um jogo de cartas marcadas”, disse. Reconhece, entretanto, que “o ex-bicheiro não é um santo”.

O Comendador leva uma vida pessoal reservada. Tem cinco filhos e a ex-mulher mora no Uruguai desde a prisão. O jornalista Anselmo de Carvalho, que foi ao país vizinho quando o comendador foi preso, destaca sua personalidade fechada. “Eu sempre tive muita curiosidade de entrevistar o Arcanjo, de saber mais o que ele pensa das coisas, de descortinar mais aquela mente dele. Um cara que é milionário, do jeito dele agir, sabe-se pouca coisa”, afirma.

O Ministério Público chegou a avaliar o patrimônio de Arcanjo em R$ 1 bilhão, mas o dado está defasado. O grupo JAR (iniciais de João Arcanjo Ribeiro) tem construtora, fazendas e muitos imóveis. Documentos da Operação Arca de Noé, que já foram divulgados na imprensa, mostram negócios do bicheiro com os ex-governadores Blairo Maggi, Júlio Campos, Carlos Bezerra, Silval Barbosa e também com familiares de Dante de Oliveira.

Comendador não é um apelido. “Ele de fato recebeu uma comenda da Assembleia Legislativa numa solenidade que contou com a presença de pessoas relevantes do meio político. É uma figura interessantíssima do ponto de vista jornalístico! Alguém que saiu de um cargo de policial civil… Essa atuação à margem da lei sendo absolutamente naturalizada”, destaca o jornalista Rodrigo Vargas, que cobriu o caso como correspondente da Folha de São Paulo.

Em fevereiro deste ano, causou frisson o aparecimento do ex-bicheiro em um vídeo de uma clínica de estética nas redes sociais. Ele chegou a ser chamado de “influencer”. Depois, Arcanjo apareceu na inauguração de uma Estação de Tratamento de Água no município de Várzea Grande, onde cumprimentou o governador Mauro Mendes e foi mais tietado que as autoridades presentes.

Arcanjo ainda tem muitos anos a cumprir em prisão domiciliar. Obteve várias vitórias na Justiça, como a prescrição do processo de desvio na ALMT, um dos maiores escândalos do estado. Mas ainda pode enfrentar, em setembro, júri popular pela acusação de ter mandado matar três jovens em 2001. A defesa nega envolvimento do ex-bicheiro e informa que o processo também já prescreveu.

Existem inúmeras  curiosidades, mas também não faltam histórias e processos. “Muita gente se vangloriava dizendo que trabalhava com Arcanjo, a pessoa se sentia poderosa por estar ligada ao Comendador. Como ele também tinha muitos imóveis, alugavam, alguns não pagavam e diziam que estavam sendo ameaçados, se aproveitando da situação”, lembra o jornalista Adilson Rosa, que trabalhava na Folha no Estado no auge da operação.

A casa do ex-bicheiro, no bairro Boa Esperança, tinha guardas e homens fortemente armados. Por ora, enquanto o livro não vem, as histórias e lendas sobre o ex-bicheiro seguem sendo contadas em um estabelecimento em frente ao local, batizado de Bar do Arcanjo, frequentado por estudantes da UFMT.

Provavelmente muitos tremem só com a ideia do Comendador contar suas memórias, especialmente os figurões cujas reputações poderiam ser comprometidas. É inegável, entretanto, que uma narrativa vinda dele seria instigante. Uma história que transita do ápice do poder à prisão e se encaminha para uma reinvenção.

 

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