COLUNA

Francisca Medeiros

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Sem regulação, cadeia do cânhamo industrial trava

Foto: EBC

Um mercado negligenciado e que não é sequer pesquisado no Brasil envolve a cadeia do cânhamo que, se regulamentada, poderia gerar receitas líquidas de R$ 5,76 bilhões até 2030. Quem diz isso é a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) que, em parceria com o Instituto Ficus, divulgou na semana passada um relatório que avalia cenários, traz dados e traça os caminhos para que a planta possa ser pesquisada, desde que antes sejam vencidas barreiras legais para a regulamentação e desenvolvimento dessa cadeia produtiva.

O Instituto Ficus é uma organização sem fins lucrativos criada há cinco anos que, entre outros projetos, apoia a criação de um marco regulatório para o uso de produtos naturais ainda proibidos, mas com valor terapêutico ou econômico, como a cannabis e o cânhamo.

Vale marcar o que diferencia cânhamo e maconha. A espécie botânica, a Cannabis sativa, é a mesma; o cânhamo é uma variedade com baixo teor de THC e é usada para fins industriais e alimentares. THC é a sigla para tetrahidrocanabinol, a principal substância responsável pelos efeitos psicoativos, o “barato”. A maconha tem teor de THC mais alto e é usada para efeitos recreativos ou terapêuticos.

O estudo liderado pela Embrapa sobre o cânhamo foi feito por um grupo de trabalho vinculado ao Conselho de Desenvolvimento Econômico Sustentável da Presidência da República. Ele mostra que essa planta multiuso oferece insumos para as indústrias têxtil, de alimentos, farmacêutica, biocombustíveis e até para a construção civil.

Falta, porém, um marco regulatório para que o Brasil entre no mercado do cânhamo do jeito certo e com regras claras. Os especialistas destacam que o cultivo pode ser modelado sob medida para pequenos produtores e, pela rentabilidade esperada, há potencial de promover inclusão social e distribuir renda no campo.

Com pesquisa, planejamento e estímulo na dose certa, o cânhamo pode se tornar uma nova commodity agrícola. A perspectiva é de retorno financeiro superior a culturas tradicionais como soja, milho, algodão, girassol e gergelim. A projeção é que, em 2030, a cultura ocupe, potencialmente, 64 mil hectares para o fornecimento de fibras e sementes. A receita gerada pode chegar a R$ 5,76 bilhões, com a criação de mais de 14 mil empregos.

Em vários países – Estados Unidos, Canadá e membros da União Europeia, por exemplo – o tratamento legal dado ao cânhamo industrial é diferente da cannabis psicoativa, o que traz a desejada segurança jurídica para quem investe.

No ano passado, o Superior Tribunal de Justiça determinou que a União e a Anvisa definissem as regras para o cultivo de cânhamo industrial no Brasil. O relatório da Embrapa/Ficus ressalta que é preciso que a Anvisa atualize a Portaria 344/1998 para excluir o cultivo de cânhamo industrial dos controles da Lei de Drogas. E a expectativa é que, em breve, seja publicado um decreto presidencial autorizando este tipo de cultivo em caráter experimental. Enquanto isso, a Embrapa espera resposta para começar projetos de pesquisa.

Caso esta medida se concretize, o cronograma sugerido no relatório é de, no curto prazo, já no início de 2026, iniciar os projetos-piloto. No segundo semestre, pequenos e médios produtores e cooperativas teriam acesso a linhas de crédito para compra de maquinário e plantio. E, para os cultivos de maior escala, com a obtenção das primeiras licenças, o início se daria em setembro de 2027. E, entre dois e cinco anos, a projeção é de início das exportações de matérias-primas de cânhamo.

Na defesa da regulamentação, a Embrapa e o Instituto Ficus consideram que esta não é uma pauta que interessa só à agricultura, ela é estratégica para o desenvolvimento sustentável e social do país.

A proposta é que o Brasil se inspire em aspectos da legislação do Paraguai, onde o cânhamo industrial, ou cannabis não psicoativa, é considerada a planta cujas flores contenham menos de 0,5% de THC. O Paraguai é o país que mais exporta produtos de cânhamo da América Latina e lá a produção prioriza a agricultura familiar e as associações de pacientes.

Países como China, Estados Unidos, Canadá e França já investem pesado na pesquisa e no desenvolvimento de novas genéticas e no manejo de cânhamo e conquistam espaço de destaque no mercado global. Hoje no mundo há mais de 25 mil produtos catalogados com a fibra do cânhamo, com aplicações na indústria têxtil, de biomateriais, construção civil, alimentos funcionais (sementes e óleo), cosméticos e insumos farmacêuticos. A planta é aproveitada integralmente porque os seus resíduos são utilizados na bioconstrução e servem de insumo na recuperação de solos.

O Uruguai, que já regulamentou a cadeia produtiva há 12 anos, atraiu investimentos, fomentou a inovação e atualmente exporta derivados de cannabis e cânhamo. A legislação prevê o uso de cannabis com as finalidades de pesquisa científica ou medicinal; uso não médico (alimento, industrialização, cosméticos) e uso recreativo para adultos. Há o controle do Estado em todas as etapas.

Para o uso recreativo, o percentual máximo de THC contido na maconha vendida nas farmácias uruguaias é de 15%. Um levantamento feito há dois anos, quando completou uma década da legalização, mostrou que havia 86 mil usuários de maconha registrados – cerca de 2,5% da população uruguaia -, mas a estimativa era que 66% dos consumidores maiores de 18 anos não estavam registrados. Entre os registrados, 70% compravam o produto em farmácias, os demais cultivavam a erva em casa (17%) ou em clubes de produtores (12%). O assunto não é unanimidade entre a população, mas desde que a lei entrou em vigor, aumentou o apoio à regulamentação desse mercado: 48% se disseram favoráveis em 2022, contra a metade (24%) lá no início, em 2012. E a parcela dos que se opunham à lei caiu de 66% para 45%.

A demora na autorização para pesquisas com o cânhamo no Brasil, impede, na prática, o desenvolvimento de cultivares adaptadas ao clima tropical e condena o país à dependência de sementes de fora quando for aprovado o plantio para fins comerciais. A pesquisadora Daniela Bittencourt, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, resumiu o risco desse vácuo. “Sem ciência, sem pesquisa, aquilo que é potencial não se tornará realidade”. E posso completar dizendo que seria mais um episódio da longa série que tem como título “Brasil, país do futuro”.

 

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