COLUNA

Margareth Botelho

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Escreve sobre atualidades, cotidiano, sentimentos e pessoas.

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Alice no país da crueldade

Hélcio Pereira Fortes/Arquivo pessoal

Ouro Preto, cidade histórica de Minas Gerais, em 24 de janeiro de 1948 nascia Hélcio Pereira Fortes, filho do casal Alice e José. Já nos primeiros anos de vida a mente inquieta do menino chamava atenção dos pais.

Devorador de livros, aos 11 anos frequentava bibliotecas e atuava no Grêmio Literário Tristão de Athayde (GLTA). Aos 12, cria uma rádio educativa, operada por um grupo tão irreverente para os padrões da época quanto Hélcio. Aos 14, já militava no movimento estudantil pela União Colegial Ouropretana (UCO). Aos 15, o adolescente preocupado com o país e comprometido em lutar por um Brasil melhor, filia-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Com o golpe militar de 64, cai na clandestinidade. Em 69 ingressa na Ação Libertadora Nacional (ALN). Em 72, aos 24 anos, é torturado e assassinado no DOI-Codi do 2º Exército, em São Paulo. Resumidamente, esta é uma das histórias resgatadas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), cujo relatório foi apresentado ao país e entregue à então presidente da República Dilma Rousseff, com 29 recomendações.

Nos registros oficiais, Hélcio é apontado como “elemento terrorista que morreu durante violento tiroteio com agentes dos órgãos de segurança”. Na suposta troca de tiros, apenas ele foi ferido e “veio a falecer”. Para o caso de Hélcio, a CNV recomendou retificar a certidão de óbito e a continuidade das investigações sobre a morte dele, para identificação dos envolvidos e futura responsabilização.

Alice Pereira Fortes, incansável na luta pela reconstrução da história do filho, não conheceu os fatos reais sobre a morte de Hélcio. A verdade que chegou para ela se somou às fotografias amareladas e à dor imensurável pela sua perda e os diversos ‘ses’ que martirizavam a memória também do pai, dos dois irmãos e de parentes, desde o último contato com a família, por meio de um telegrama, no Natal de 1971.

Se Hélcio estivesse vivo teria hoje 76 anos, talvez tivesse companheira, filhos e até netos. Muitos dessa geração, considerados rebeldes porque lutaram contra o regime militar, sobreviveram aos porões de tortura e aos “anos de chumbo” da ditadura. O regime que “roubou” o poder no Brasil foi implantado no dia 31 de março de 1964 e seguiu até o ano de 1985.

No ato de entrega do relatório da Comissão da Verdade, em dezembro de 2014, Dilma reviveu seus horrores tal qual um filme passando pela cabeça. Ela era naquele momento a autoridade máxima do país e uma sobrevivente de inúmeras sessões de tortura, impostas a quem se opunha aos militares. Na solenidade, o choro contido da ex-presidente veio junto com a frase “a verdade liberta todos nós do que ficou por dizer, por explicar, por saber”.

Em viagem pelo tempo, nos anos 70, vejo Alice abraçada à minha mãe, no apartamento da Rua Guarani, em Belo Horizonte (MG). Nas mãos um exemplar amassado do jornal O Estado de Minas. Lembro de Alice contando que documentos da autópsia do filho tinham um “T” vermelho, que significava tratar-se de um terrorista. Olhos inchados, lágrimas e depois um silêncio doído que eu, ainda menina, compreendi muito depois.

A história de Hélcio, o primo mineiro que sonhou, lutou e acreditou num país melhor e justo, precisa ser contada como centenas de outras. Chamo atenção aqui sobre a importância do Direito à Memória. Quero saber mais, bem mais, sobre o Hélcio e seus companheiros que a ditadura levou. Gostaria que meus filhos, netos, enfim outras gerações, tivessem essa verdade escancarada em aulas e livros didáticos. Fotos e vídeos.

É legítimo. É dever moral das autoridades nacionais e consta entre as recomendações feitas pela Comissão da Verdade que nós, brasileiros, esperamos ainda ver atendidas. Não há dúvida de que apenas um relato honesto possibilitará a releitura do país. Sem alinhavar fatos e versões, trajetórias de Hélcios e Alices ficarão perdidas como se fossem apenas casos de família.

Hélcio passou seus últimos meses de vida no bairro da Penha, Rio de Janeiro. Dividia a pequena casa com a também militante Ilma Noronha, que tinha uma filha. Os três juntos se passavam por uma família. No dia 22/01/1972, Hélcio foi preso em circunstâncias não muito claras. Relatos de outros militantes garantem que ele foi levado ao DOI-Codi do Rio e imediatamente começaram as sessões de tortura. Seis dias depois (28), junto a também militante da ALN, Darci Miyaki, foi transferido ao DOI-Codi de São Paulo, onde recomeçaram as sessões de tortura incluindo afogamento, pau de arara e cadeira de dragão.

Em depoimentos, Darci revelou que ouvia de sua cela os gritos desesperados e alucinantes de Hélcio, torturado barbaramente pela equipe do Capitão Ubirajara (Aparecido Laércio Callandra). A morte dele foi anunciada na noite do dia 28/02 pela televisão. Pai, mãe e irmãos, na esperança de resgatar o corpo, já enterrado no Cemitério Dom Bosco, seguiram para São Paulo. Apenas o pai teve acesso à sede da Oban (Operação Bandeirante), principal centro de torturas e mortes do governo militar. José Fortes contou ter sido tratado com desprezo e chegou a ouvir de um agente a frase “acabou de sair um presunto fresquinho daqui”.

No atestado de óbito, obtido com dificuldade pela família, a causa da morte de Hélcio aparece como anemia aguda traumática, motivada por tiroteio trocado com policiais na Rodovia dos Bandeirantes. A família teve acesso também a uma foto de Hélcio morto, mostrando o olho esquerdo aberto por “possivelmente” um tiro à queima-roupa. Somente anos depois, em 1975, a família conseguiu autorização para exumar restos mortais e transferi-los do Cemitério Dom Bosco, em Perus, para o Cemitério da Igreja de São José, em Ouro Preto.

Em 1996 foi aprovada a reparação sobre a morte de Hélcio, descartando a versão oficial do governo militar. Alice, já viúva, encerrou a sua luta de mãe no mesmo ano. As informações sobre a reparação da trajetória de Hélcio mostram que, em 2014, o Ministério Público Federal denunciou três policiais como responsáveis pela morte do militante político. Entre eles, o MPF cita o delegado da Polícia Civil de São Paulo, Dirceu Gravina.

 

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