Motoristas de reportagem, os invisíveis da notícia

Fátima Lessa*
A mensagem no celular chegou assim, “sexta-feira é meu aniversário de 70 anos e gostaria que você viesse comemorar comigo e minha família”.
Não pensei duas vezes e aceitei. Pedi a localização e, na sexta, fui até o lugar. Não era em nenhum clube chique da cidade. Era melhor. Um sítio hoje chamado chácara, mas, para nós, jornalistas frequentadores do local, sempre será o Mangueiral do Leonir, por causa dos tempos em que ele trabalhava no jornal e, nos fins de semana, rolava por lá sambinha, feijoada, cerveja e muita resenha.
Naquela época, a gente dizia simplesmente “passa o endereço e os pontos de referência”. Não existia GPS e era tudo tão natural.
Um sítio com cheiro de terra molhada, cheio de pés de manga.
Na sexta-feira, cheguei. A família? Um punhado de gente querida, esposa, filhos, netos, sobrinhos. Todos parentes. A estranha era eu e, ainda assim, me sentia em casa. O cuiabano tem esse jeito de fazer a gente se sentir parte. Lembra muito o ludovicense.
Mas esse texto não é sobre aniversários. É sobre ausências e presenças. Sobre os motoristas de reportagem, hoje praticamente extintos, que fizeram parte de tantas coberturas jornalísticas pelo Brasil afora.
A conversa no mangueiral me levou de volta à rotina de repórter. As saídas para cobrir eventos, as pautas mais difíceis, as histórias que mereciam escuta, atenção, cuidado. E os motoristas estavam sempre lá.
Eles dirigiam, protegiam, observavam. Às vezes eram os primeiros a perceber que havia algo errado, ou que a situação era arriscada.
Alguns chegaram a nos salvar sem exagero de uma paulada, de uma abordagem tensa, de um atropelamento iminente no meio da confusão.
Quando o trio era regra, não exceção
Não era a jornalista, o fotógrafo e o motorista. Era uma equipe. Uma parceria. Ainda que a empresa insistisse em hierarquizar.
Hoje esse trio quase não existe mais. Na TV, quem dirige o carro, na maioria das vezes, é o repórter cinematográfico. Nos jornais, o repórter fotográfico. E, cada vez mais, o repórter vai sozinho, com um celular na mão, prazos irreais e pressão.
A uberização chegou às redações
A uberização também chegou ao jornalismo. O deslocamento por carro ou moto de aplicativo, equipamento próprio e pouca ou nenhuma estrutura. A ausência dos motoristas nas equipes não representa só um corte de custos. Representa um corte de humanidade. Com eles, perdemos uma camada importante da escuta, da observação e da leitura do ambiente.
Eles eram olhos extras, ouvidos atentos, presenças que nos ajudavam a apurar melhor, a perceber detalhes, a encontrar caminhos, físicos e narrativos.
A substituição dessa figura por alguém que “faz tudo” empobrece o jornalismo, precariza o trabalho e mina a segurança. Não é avanço. É perda.
Eu tive sorte. Tive bons motoristas ao meu lado, principalmente em coberturas difíceis, de violência, protestos, calamidades. Eram mais que condutores. Eram companhia, suporte, proteção.
Volto ao mangueiral
O lugar, além de afeto, é símbolo de resistência.
A cidade se fecha com muros, portões e grades. Brotam prédios, ruas asfaltadas, casas vigiadas por câmeras. Mas a chácara do Leonir resiste sem grades, sem cimento, com sombra e cheiro de manga.
Um espaço de memória, onde a conversa é livre. Onde jornalista é gente. Onde o motorista é lembrado com nome e afeto.
Eles sabem mais do que parecem
Hoje, os jovens repórteres talvez nem saibam o que perderam. Cresceram profissionalmente num tempo em que não há mais tempo. São eles por eles mesmos. Dirigem, gravam, fotografam, anotam, editam e, no meio disso tudo, precisam também ouvir com atenção, perguntar com responsabilidade e investigar com profundidade.
Mas apuração não é só correr atrás da fala oficial. Às vezes, está na conversa paralela que o motorista escutou enquanto esperava. No cochicho entre dois seguranças. No corredor da delegacia. No que um morador comentou baixinho ao passar por ele.
“Olha, escutei que o pessoal da empresa está com medo de ser demitido semana que vem”; “aqueles policiais localizaram o traficante”; ou “parece que o vereador vai tentar fugir da coletiva pelos fundos”.
Motoristas bons de escuta são fontes silenciosas. Não aparecem na linha fina, nem recebem crédito no final da matéria. Mas a reportagem, muitas vezes, nasce ou se salva por causa deles.
Eles conhecem a cidade como poucos. Sabem onde parar, o que evitar, qual rua é perigosa. Sabem dos bairros, das lideranças, das falas que importam. E sabem ler o ambiente. Sentem no ar quando algo está estranho, pesado, fora do lugar.
E salvam a repórter também. “Cuidado!” foi o grito do motorista que nos deixou atentos (eu e o repórter fotográfico) numa reportagem sobre uma ocupação do Incra.
Mas quase nunca aparecem. Não são citados, não são lembrados.
E se há algo que aprendi nesses anos de estrada é que o jornalismo também é feito por quem não assina a matéria. É feito pela senhora do café, pela moça da limpeza, pelo técnico da gráfica, pelo estagiário e pelos motoristas.
Talvez por isso aquele convite me tocou tanto. Não era só um aniversário. Era um reencontro com uma parte essencial da minha história e com aquele jornalismo de janela aberta, que andava devagar porque precisava ver, ouvir, sentir. Um jornalismo que não andava sozinho.
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