COLUNA

Sônia Zaramella

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Relatos e fatos, pessoais ou não, do passado e do presente de Cuiabá e de Mato Grosso.

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Ivens Scaff e Silva Freire ‘poetizam’ Cuiabá no céu

Terça-feira foi celebrada a missa de sétimo dia do falecimento do médico, poeta e escritor Ivens Cuiabano Scaff. Ao saber de sua morte, pensei primeiro nos meus amigos que eram amigos dele, como Álvaro Lúcio Rondon, e nos meus primos contemporâneos dele, como Éverton Carvalho, este já na eternidade. Depois, uma quantidade de rostos cuiabanos, dos tempos de antes e de agora, e de familiares de Ivens desfilou pelas minhas lembranças. Então senti uma tristeza profunda e me juntei aos amigos, pacientes, leitores, alunos e parentes dele em solidariedade a sua perda.
Nunca fui próxima de Ivens como foram meus amigos e parentes. Mas sou uma admiradora de primeira hora de toda sua obra e uma cuiabana orgulhosa da forma como expressa, na literatura, seu arrebatamento por nossa cidade. Em Kyvaverá, um de seus famosos livros de poesias, “que é uma declaração de amor e um lamento dedicado à capital e seus arredores”, Ivens oferece a obra “a todas as pessoas a quem a simples menção do nome Cuiabá evoca vibrações felizes em seus corações”. Muito bom isso! Concordo com ele, gosto até da sonoridade da palavra Cuiabá.

Na minha visão desprovida de lastro erudito, mas baseada em sentimento e respeito, associei logo a morte de Ivens, agora em 2024, à morte de Benedito Sant’Ana da Silva Freire, em 1991. Dois ícones da intelectualidade cuiabana que agora estão no céu (creio nisso) e que deixam, na terra, um vazio cultural grandioso para Mato Grosso. Porém, na perspectiva de produção literária, os legados de Ivens e de Silva Freire têm dimensões para além da literatura regional, sendo apreciados por leitores do país e de fora dele, e pesquisados por estudiosos da linguagem literária, o que é uma honra para nosso estado.

Além da paixão por Cuiabá e pelos versos, Ivens e Silva Freire tinham mais coisas em comum. Poetas, possuíam profissões primeiras que os ligavam às causas coletivas, pois Ivens era médico infectologista reconhecido por atuação no tratamento da AIDS e Silva Freire era advogado criminalista destacado pelo domínio da oratória e defesa das questões sociais e políticas. Ambos foram docentes da Universidade Federal de Mato Grosso nos cursos de Medicina e Direito e membros da Academia Mato-grossense de Letras (AML) – Ivens ocupou a cadeira 7, Silva Freire a cadeira 38.

Pela valorização da origem, costumes e linguajar, entre outras referências culturais cuiabanas, de maneira primordial nas suas obras, Ivens e Silva Freire são símbolos da poesia local. Conversando sobre isso com o amigo e poeta cuiabano Aclyse de Mattos concordamos com a sensação de que a morte de Ivens é uma perda para a cultura mato-grossense, assim como ocorreu na década de 1990 com o falecimento de Silva Freire. “Tanto Ivens quanto Silva Freire tinham esse carisma de extrair das fontes populares uma vivência de alta cultura. E vice-versa: de encontrar na alta cultura seu traço de povo, de comunidade, de raiz”, atestou Aclyse.

Ele observou que “essa ideia de separatismo cultural esconde o que hoje parece clássico do que antes era extremamente popular”. Aclyse rememorou que “o teatro era nas praças, a música era nas festas (religiosas ou profanas)”, reforçando que, “além disso, há o regime ético da arte: o artista é um ser inserido na vida da comunidade”. Assim, pontuou que “Ivens na Medicina e Silva Freire no Direito eram totalmente participantes da polis cuiabana”. Mas sublinhou que “isso é de um tempo ancestral mágico em que o artista era gente da comunidade e não um pop star que vem de fora”.

Aclyse de Mattos reiterou que “se existe o preceito de que ninguém é profeta em sua terra, creio que também se pode pensar que o artista é mais artista se incorpora sua terra”. Ele completou seu pensamento afirmando que “se o mundo hoje quer ser multiculturalista, Cuiabá já era multicultural na raiz”, considerando a existência conjunta de muitas culturas na capital mato-grossense desde sempre. Tal qual Ivens e Silva Freire, as obras de Aclyse de Mattos têm a presença do olhar e sentir cuiabanos. Destaco, entre outras publicações, Assalto a mão amada, O sexofonista e Quem muito olha a lua fica louco. Ele ocupa a cadeira 3 da AML.

Quanto às obras de Ivens e de Silva Freire, menciono algumas como inspiração para leitura. Pela ordem de nascimento e morte, primeiro cito as de Silva Freire, nascido em 1928 e falecido em 1991. O poeta teve publicações em variados veículos impressos e em formatos diferentes também, mas estudiosos relacionam entre suas principais obras as seguintes: Meu Chão, Pássaro Implume, As Redes, Os Meninos de São Benedito, Águas de Visitação e Trilogia Cuiabana.

Ivens Cuiabano Scaff nasceu em 1951 e morreu em 2024. Seus livros de poesia já publicados são Mil mangueiras, Kyvaverá e Asas de Ícaro. Ele possui extensa produção de livros infantis e infanto-juvenis, destacando-se Uma maneira simples de voar, O menino órfão e o menino rei, e A mamãe das cavernas e a mamãe loba. Entre as obras inéditas a serem lançadas pela Editora Entrelinhas está a trilogia Além Tordesilhas, uma ficção histórica para jovens, que narra as incríveis aventuras de três meninos nas monções do século XVIII.

Entre tantos versos desses dois poetas apaixonados por Cuiabá é difícil indicar um de cada para apreciação. Mesmo assim, com a ajuda do amigo-poeta Aclyse de Mattos, sugiro Cuiabá oitocentista, de Ivens Cuiabano Scaff; e Canto-Murmúrio para minha cidade, de Silva Freire.

Continuem aí na eternidade poetizando nossa capital, poetas. Descansem em paz!

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