Mudanças climáticas e resiliência da agricultura
Resiliência é uma palavra tomada emprestada da física para descrever a capacidade da pessoa se recuperar, com alguma facilidade, diante de uma mudança drástica. Na agropecuária esse termo é usado há muito tempo, mas, por razões óbvias, ganhou força nos últimos anos marcados por tantas incertezas e perdas de produção devido às oscilações climáticas.
E as previsões são de que a temperatura média anual global estimada para os próximos 20 anos poderá subir 1,5°C, caso nada seja feito para frear esta tendência, com graves consequências sociais e econômicas, que serão sentidas, primeiro, por quem produz.
O que se pergunta é o quão rápido a agropecuária pode se adaptar, tornar-se mais resiliente para evitar a escassez de alimentos. Sim, já há ferramentas para minimizar estes impactos em muitas áreas. E, sem entrar nas questões políticas e econômicas necessárias à tomada de decisão para adoção em larga escala, tratarei de algumas delas.
Um exemplo vem da academia e envolve o uso da biotecnologia para conseguir mais resiliência de plantas de milho ao estresse hídrico. O estudo foi desenvolvido na Unicamp, onde está instalado o Centro de Pesquisa em Genômica Aplicada às Mudanças Climáticas (GCCRC), constituído por Fapesp e Embrapa.
Essa pesquisa identificou fungos e bactérias que favorecem o crescimento da cana-de-açúcar e que, depois, foram inoculados no milho. Os resultados foram plantas que se mostraram mais tolerantes à seca e que também se recuperaram bem depois de passar por este estresse hídrico.
Estas bactérias e fungos ‘do bem’ podem diminuir a temperatura das folhas em até 4°C, o que ajuda a planta a controlar o consumo de água. O GCCRC trabalha, com ajuda da inteligência artificial, no sequenciamento do genoma de 25 mil bactérias e 10 mil fungos para descobrir como eles agem nas plantas. Entre as linhas de pesquisa está o desenvolvimento de inoculantes que poderão ser opção aos fertilizantes químicos.
O incremento consistente da produção e produtividade das principais culturas deve muito ao melhoramento genético, com a seleção de linhagens mais tolerantes, ou mesmo resistentes, à escassez ou excesso de água e calor. Algumas das estratégias são a redução do tamanho das folhas (perde menos água para o ambiente) e maior desenvolvimento das raízes (buscam água mais profunda).
No caso da soja há sementes melhoradas que, intrinsecamente, carregam o potencial de a planta se desenvolver bem com menos água. Por exemplo, 380 mm de precipitação já são suficientes ao invés dos 450 mm a 800 mm usuais durante a temporada.
Já com o milho há híbridos disponíveis que podem incrementar a produção em 8% durante a estiagem, com plantas mais baixas e que resistem melhor às mudanças climáticas. Exemplos semelhantes de variedades de cana e trigo, mais adaptadas a esta situação, já estão no campo.
Saindo agora da esfera das pesquisas de ponta, há práticas mais simples, conhecidas, e que podem ser adotadas mais amplamente, em especial na agricultura familiar, universo que engloba 80% das explorações agrícolas da América Latina (60 milhões de pessoas), segundo a FAO.
Com menos água e mais calor, há o risco de aumento da salinidade dos solos, desertificação e perda da capacidade produtiva. Ganham importância as técnicas de irrigação adaptadas ao pequeno, como, por exemplo, a captação de água da chuva em cisternas.
É claro que é essencial que as comunidades tradicionais, indígenas, produtores familiares e em pequena escala tenham, antes de tudo, acesso à terra, ao crédito e à assistência técnica.
A diversificação de culturas numa mesma área, os cultivos intercalados, os sistemas agroflorestais e o plantio direto são eficientes para proteger o solo e a água e diminuem a dependência do produtor de uma só fonte de alimento ou renda. Assim como a Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF) e a recuperação de pastagens de baixa produtividade.
Há mais de 14 anos o Brasil adotou a estratégia do Plano ABC+ (Plano Setorial de Adaptação e Baixa Emissão de Carbono na Agropecuária). Ele foi revisado em 2023 e visa atingir mais de 72 milhões de hectares, tornando a agricultura “mais resiliente, produtiva e competitiva”, nas palavras de Renata Miranda, secretária de Inovação e Desenvolvimento Sustentável do Ministério da Agricultura, em fala recente sobre o programa. “Se não fizermos, ficaremos mais vulneráveis a fenômenos climáticos”, alertou.
O conceito de agricultura resiliente é antigo e é uma preocupação em diferentes partes do mundo. Na Ásia e na África, a Fundação Aga Khan trabalha com a ideia de fortalecimento desta ideia desde o final dos anos 1960. Atua em comunidades vulneráveis de Moçambique, Afeganistão, Filipinas e Índia, entre outras, a aumentar a resiliência diante dos extremos climáticos.
Fundada por Aga Khan IV, líder espiritual dos muçulmanos xiitas ismailis, a agência tem, desde sua origem, entre seus objetivos expressos, “construir comunidades resilientes”, ajudando-as a “mitigar e superar situações de desastres naturais e a melhorar os seus habitats”.
Um exemplo de projeto que a agência financia no Quênia é liderado por Elizabeth Mbogo, uma articuladora da introdução da moringa dentro dos plantios usuais daquele país. Esta árvore originária da Índia, de crescimento rápido ao longo de todo o ano, resiste à seca e é tão multiuso que é chamada ‘árvore milagrosa’.
Hoje há uma rede de mulheres quenianas que se beneficia da venda de subprodutos da planta rica em proteínas, vitaminas e minerais usados na alimentação humana e de animais, medicamentos e produtos de beleza. Este exemplo prático mostra que a proteção ambiental pode gerar múltiplas oportunidades coletivas.
A moringa já é também muito estudada pela pesquisa agronômica no Brasil, inclusive pelo potencial de purificar a água e também recuperar os solos. As sementes da moringa decantam a água, separando as impurezas, tornando-a apta para o consumo humano. O que pode ser essencial em situações de desastres ou para populações sem acesso à água tratada.
A agricultura resiliente pode também ser fortalecida por quem vive nas cidades. Com as cheias do Rio Grande do Sul foi apresentado, para muitos pela primeira vez, o conceito de cidades-esponja e a necessidade de se abrir mais oásis verdes em meio ao concreto e asfalto. Podem ser pequenas praças com espécies alimentícias, hortas comunitárias e verticais, cultivo em vasos.
A conexão campo-cidade fortalece quando se conhece melhor como os ciclos produtivos funcionam. E uma visão mais holística leva mais gente a querer fazer melhor sua parte.
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