COLUNA

Francisca Medeiros

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Quando as águas baixarem…

Foto: Marinha do Brasil

Em 90% dos municípios gaúchos há um rastro de destruição provocado pelas inundações decorrentes das chuvas intensas que caem há 12 dias. É um cenário de guerra que já afetou diretamente 2 milhões e 100 mil pessoas. Já são 143 vidas perdidas, 131 desaparecidos e 806 feridos. Mais de 600 mil estão desalojados e 81 mil foram levados para 700 abrigos por todo o estado. E o que virá depois que as águas baixarem?

O pós-guerra será cheio de incertezas, mas com algumas situações previsíveis, como o aumento das doenças infecciosas, a fragilização da saúde mental, o deslocamento de populações inteiras com a possível reconstrução de cidades e bairros em outros lugares. Tudo agravado por imensas perdas econômicas e financeiras com forte impacto no Rio Grande do Sul e no país.

As primeiras contas dos prejuízos materiais, em dinheiro, começam a ser feitas, mas são preliminares, até porque os riscos ainda não passaram e os rios não retomaram o seu curso natural. Assim como as perdas de vidas, há outros danos que também não podem ser medidos.
Como colocar preço, por exemplo, em fotos de família que emolduravam lembranças? No bibelô herdado dos avós? E nos frutos e flores não colhidos? Tem como copiar de memória os rabiscos na parede caprichosamente desenhados pelo netinho?

São detalhes sensíveis que constroem a individualidade, que fazem sentido para cada um, que diferenciam uma casa de um lar. O certo é que as águas levaram mais do que paredes e telhados, móveis, utensílios, jardins, lavouras, rebanhos, grãos, armazéns, máquinas e mercadorias. Muita gente não tem mais sequer os documentos pessoais e será muito difícil para elas lidarem também com as perdas de memórias afetivas .

Toda situação extrema, porém, provoca reflexões e pode impulsionar mudanças de rumo. Nesta tragédia anunciada no Rio Grande do Sul as mudanças climáticas têm papel central, apesar de ainda persistir o discurso negacionista entre muitos dos que têm o dever de trabalhar pelo enfrentamento do aquecimento global. Este é um fenômeno mundial que requer ações de prevenção e controle em todos os níveis, inclusive o local.

Em uma entrevista recente à BBC News Brasil, o secretário-executivo do Observatório do Clima (OC), Marcio Astrini, avaliou que estes eventos extremos não podem mais ser tratados como “imprevistos”. Já se vão nove anos consecutivos com médias de temperaturas ascendentes. Os eventos extremos são cada vez mais frequentes e Astrini recomenda que é preciso aceitar esta realidade e tomar atitudes para mudá-la.

Definitivamente, as respostas ao fenômeno têm sido tímidas e lentas em todas as esferas do poder público e na iniciativa privada. Com a crise climática instalada, a atuação deveria ser em três frentes: na mitigação das causas, na adaptação e preparação para as consequências e na redução dos danos diante das tragédias.

No Rio Grande do Sul, o que se vê agora é a reação emergencial e necessária diante do estrago feito, com forte mobilização dos órgãos  públicos e da sociedade civil, com a vital participação de voluntários de todos os cantos do país.

Neste episódio de grandes perdas e danos, organiza-se forças-tarefa para a retirada de pessoas das áreas de emergência, a montagem de abrigos e a estruturação da rede de socorro para distribuição de alimentos, roupas e medicamentos. Obras emergenciais são levantadas para restabelecer os serviços de água, luz, telefone e de atendimento à saúde e, logo mais, na construção de casas perdidas.

Marcio Astrini explica que a mitigação é quando se ataca o problema. Quando, por exemplo, se interrompe o desmatamento ou se substitui uma fonte de energia poluente por outra renovável.

Já a adaptação é “quando o problema vai acontecer e você começa a adaptar principalmente as populações mais vulneráveis ao problema”. São exemplos as retiradas de populações de áreas de risco, quando governos e prefeituras oferecem assistência para pequenos produtores lidarem com a seca ou quando os institutos de pesquisa se dedicam a desenvolver variedades de plantas mais tolerantes ou resistentes à estiagem.

A crítica do secretário do Observatório do Clima é que a ação normalmente se concentra no nível da desgraça. Para ele, “o dinheiro investido na primeira camada vale muito mais porque ele evita a adaptação e o desastre”. E completa que “quem salva mais vidas é o planejamento e, no caso dos municípios, o planejamento urbano”.

E não se pode esquecer o importante papel que têm os legisladores. A legislação ambiental do Brasil tem sofrido uma meticulosa sequência de desmontes, com afrouxamento no licenciamento ambiental e na maior permissividade ao uso das áreas que deveriam ser de preservação ambiental.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, tem sido uma voz quase solitária de alerta ao mundo de que as mudanças climáticas estão fora de controle e que o adiamento de medidas de contenção pode levar o planeta a um ponto catastrófico. Ele reforça que estas mudanças têm o poder de amplificar as crises e que “tudo aquilo que já podia acontecer vai se tornar mais drástico”.

O climatologista Carlos Nobre também tem alertado que os eventos extremos não têm mais volta e que uma das tarefas urgentes a ser feita é a restauração de biomas em grande escala, o que é dificultado pelo negacionismo climático, considerado por ele uma tendência mundial muito perigosa.

O certo é que, dentro de alguns dias ou semanas, as águas no Rio Grande do Sul vão baixar e vão revelar, com toda a crueza, o quanto se perdeu. Os mortos serão contados e chorados, a lama será retirada das estradas e das casas, mas será difícil aceitar que a vida possa seguir no mesmo ritmo, enquanto se tem a certeza de que uma próxima catástrofe vai interromper, a qualquer momento, novas vidas e sonhos em algum ponto do país ou do planeta.

 

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