COLUNA

Francisca Medeiros

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Saneamento rural, um tema negligenciado

Dele pouco se fala, não é pauta dos debates cotidianos e surge, muito marginalmente, nas plataformas das campanhas eleitorais de candidatos. Conceitualmente, é uma necessidade essencial, aquela que deve ser atendida primeiro. Mas o saneamento básico – disponibilidade de água potável e de coleta e tratamento de esgoto – recebe investimentos aquém da demanda, está longe de ser acessível a toda a população, especialmente as das zonas rurais, onde a situação é mais precária.

Se fosse traduzida numa imagem, a vítima preferencial desse descaso seria um brasileiro de cor parda, baixa escolaridade, renda baixa e bem jovem, com menos de 20 anos de idade, que vive na zona rural do Nordeste. Este cenário está detalhado no estudo do Instituto Trata Brasil –  “A Vida sem saneamento – Para quem falta e onde mora essa população?”, feito em parceria com a Ex Ante Consultoria Econômica e o Cebds (Conselho Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável). O resultado é que, para boa parte da população, ter água de qualidade e esgoto tratado é, ainda, um direito não garantido. E no campo, mais isolado e com menor poder de voz, o problema é mais grave.

Criado em 2007, o Instituto Trata Brasil é uma Oscip com participação de empresas que atuam por avanços no saneamento básico do país. Esta análise em foco se baseia na PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Anual), do IBGE, e aborda o acesso à rede geral de água, a frequência de recebimento insuficiente, disponibilidade de reservatório, privação de banheiro e de coleta de esgoto. E também mostra a correlação da privação destes serviços com a piora da saúde da população.

“A moradia com privação de saneamento é tipicamente uma casa na área rural em uma cidade de interior ou na periferia das grandes cidades”, resume um trecho do estudo, que “desenha” a casa média com “três a quatro cômodos: sala, cozinha e um ou dois quartos. Nessa cozinha não chega água tratada. O lixo dessa casa é queimado no quintal ou jogado em terrenos”. E entre as consequências diretas desta precariedade está o aparecimento das doenças transmitidas por via hídrica, uma causa totalmente evitável e que ainda traz tanto sofrimento e gastos com tratamentos.

Se para uma geração urbana que não tem curiosidade em saber como a água tratada chega à torneira e ao vaso sanitário, há milhões de pessoas para quem isso é só um desejo. Em 2022, eram 102,7 milhões de pessoas no país com algum tipo de privação – aproximadamente um a cada dois brasileiros. Nesta condição estavam 39,5% da população do Nordeste, seguida, em números absolutos, pelo Sudeste, Norte, Sul e Centro-Oeste.

O perfil dos sem acesso a banheiro escancara a desigualdade social, que passa por raça e renda. Dos brasileiros nesta situação, 54,5% se autodeclararam pardos. Do total de 4,4 milhões, 76,2% moravam em domicílios com renda total mensal de, no máximo, R$ 2.400. Uma precariedade que atinge os jovens em cheio, já que 40% tinham menos de 20 anos de idade.

No país, mais de um quarto das moradias urbanas (27,4%) não tinha banheiro em 2022. No meio rural, o percentual beirava a um escândalo: eram 72,6% das moradias.

No meio rural 64,2% das moradias brasileiras não tinham acesso à rede geral de água e quase metade da população (49,8%) enfrentava o problema do abastecimento irregular. Da população total de Mato Grosso, 524 mil pessoas não tinham acesso à rede de água.

Tratando de reservatórios de água, em Mato Grosso eram 324 mil pessoas afetadas pela falta destes equipamentos, quase 10% ( 9,1%) da população. E 4 mil moradias não tinham banheiro, englobando cerca de 14,2 mil pessoas. E sem coleta de esgoto, eram 742 mil moradias

Um pouco mais de números, agora mostrando as moradias rurais privadas da rede de esgoto. Em termos relativos, um problema que afeta 90,9% das casas e que alcança 49,6% da população rural. O que é devido, em grande parte, ao elevado custo em se coletar e transportar os resíduos a grandes distâncias. Em Mato Grosso, considerando a população total, eram 2,23 milhões de pessoas nesta condição, o que colocava o estado na desconfortável sétima posição entre os piores, somando 62,8% da população.

São números que refletem o baixo investimento no saneamento em geral e, no meio rural, em particular. A falta de prioridade política para atender a esta parcela de cidadãos foi estudada por dois pesquisadores do Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea). César Nunes de Castro e Monise Cerezini publicaram em maio de 2023 um texto para discussão que observava que a Lei 14.026/2020, que alterou o marco legal do saneamento básico brasileiro, não trazia as metas para o meio rural e praticamente deixou o tema de fora de todo o arcabouço legal.

 

Estudando os discursos sobre o assunto dos parlamentares na Câmara e no Senado, os pesquisadores constataram que o Plano Nacional do Saneamento Rural (PNSR) não foi mencionado uma única vez durante um período de oito anos (de 2014 a junho de 2022). Ou seja, para nossos representantes políticos, saneamento rural não é assunto nem da boca pra fora. Eles levam a sério a máxima (criada por eles mesmos!) de que o que está enterrado, escondido, não é visto e não é lembrado e, portanto, não dá voto!

À parte a questão eleitoreira, o saneamento garante saúde, bem-estar e dignidade humana. A maioria de nós, jornalistas, já escreveu alguma vez que a cada real investido em saneamento se economiza quatro em tratamentos de saúde. E esta relação é confirmada por diferentes estudos técnicos feitos em épocas diversas.

A falta de acesso à água tratada abre espaço para as doenças gastrointestinais e também interfere nas doenças respiratórias. É só relembrar as recomendações durante a pandemia de covid-19 para manter a higiene das mãos valendo-se da dupla água e sabão. Também se sabe o quanto a oferta de água fluoretada favorece a saúde bucal da população.

Ninguém pode questionar que, na esteira da falta de coleta e tratamento de esgoto, também surgem as doenças gastrointestinais. São males, às vezes, tratados como corriqueiros, mas que podem se complicar. O afastamento de pessoas do trabalho e os tratamentos também acarretam prejuízos financeiros irrecuperáveis para empresas, governos e sociedade. Entre as doenças de veiculação hídrica incluídas na Cid 10 estão diarreia e gastroenterite, cólera, doenças infecciosas intestinais, leptospirose, malária, esquistossomose.

 

O Marco do Saneamento não explicita alguma distinção da população urbana e rural quanto à meta de universalizar, dentro de uma década, o abastecimento de água e a coleta e tratamento de esgoto. Mas, pelo andar da carruagem, os investimentos, a partir de decisão política, terão que ser acelerados para diminuir a desigualdade campo-cidade. E um bom início pode ser dar uma maior visibilidade ao problema.

 

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