COLUNA

Sônia Zaramella

soniaz@ehfonte.com.br

Relatos e fatos, pessoais ou não, do passado e do presente de Cuiabá e de Mato Grosso.

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Temor do Segundo Sol

A canção de Nando Reis interpretada por Cássia Eller fala de uma profecia da chegada do ‘segundo sol para realinhar as órbitas dos planetas’. Mesmo sendo uma predição na perspectiva poética do autor da música, portanto, sem qualquer viés científico, penso no Segundo Sol toda vez que o calor extremo (45°C) se abate sobre Cuiabá, especialmente em agosto, setembro e outubro, estendendo-se ainda fortemente por novembro e dezembro, já com as chuvas.

Se com um sol só girando os cuiabanos não estão dando conta de enfrentar o clima quente o ano todo, imagina dois sóis na cidade? Fantasias à parte, a verdade é que as altas temperaturas vêm aumentando, e assustando. Os apelidos de ‘cuiabrasa’ e ‘calorosa’ da cidade vão perdendo a graça, dando lugar a uma tendência de preocupação. Cuiabá é popular no país pelo calor. Portanto, o tradicional padrão de temperatura alta que registra, aliás presente na cidade desde sua origem, no século 18, não é novidade para ninguém.

Mas a sombra (esparsa e pouca) das árvores, os rios, cachoeiras, piscinas, os ventiladores e aparelhos de ar-condicionado, além, óbvio, da cervejinha gelada, entre os recursos habituais do cuiabano para conviver com o calor, estão se revelando coisa diminuta perante a realidade deste 2023. O fenômeno El Niño, associado à localização geográfica de Cuiabá, ao efeito de ilha de calor urbano e ao aquecimento global, entre outras causas, tornou tórrido nosso cotidiano, principalmente quanto à saúde.

Outra novidade de agora é que as ondas de calor estão ocorrendo mais vezes e por dias contínuos na capital, estão durando mais. Por isso, em Cuiabá, assim como nos outros 140 municípios mato-grossenses, o quadro ambiental de calor extremo e baixa umidade relativa do ar de 2023 não pode nem deve ser ignorado. Na verdade, é um alerta grave que demanda ações sociais, ambientais, científicas e de saúde pública para seu enfrentamento por parte das autoridades locais. Está no conjunto das mudanças climáticas que, parece, vieram para ficar. Não se trata apenas do El Niño.

Todavia, em Cuiabá e em Mato Grosso não há concretas respostas institucionais à crise. Nota-se o trabalho da Defesa Civil de advertir regiões quanto às tempestades, às ondas de calor e aos perigos da baixa umidade relativa do ar para a saúde e a ação do projeto Verde Novo, do Tribunal de Justiça e parceiros, de arborização pública em Cuiabá. Mas isso só não é insuficiente para a situação de agora? Em entrevista ao MidiaNews, o geriatra cuiabano Luiz Gustavo Castro Neves foi certeiro, por exemplo, ao cobrar campanhas públicas de conscientização sobre os riscos do calor como uma ação necessária diante dessa Cuiabá ardente e abafada.

Depois de frisar que “o calor severo, combinado com índices de umidade do ar baixos, semelhantes aos do deserto, é um risco para a saúde humana, especialmente dos idosos”, Castro Neves foi categórico ao dizer que “o melhor tratamento das coisas é o conhecimento, mas aqui [Cuiabá] não temos estratégia de divulgar informação pelo sistema público de saúde. Parece que não acontece isso [temperaturas altas], porém, a cada ano, o calor está mais extremo e ainda assim as autoridades não se deram conta disso e não criaram nenhum programa de orientação”.

Além de campanhas, outra medida, essa relativa à produção de conhecimento, seria a criação, pelas instituições públicas de ensino superior mato-grossenses, de um Observatório do Calor nos moldes do projeto que funciona no Rio de Janeiro, vinculado à UFRJ. Mostrado pela Globonews, o objetivo do Observatório do Rio é mapear o calor e compreender o impacto das altas temperaturas na saúde das pessoas. Entre suas prioridades estão a de auxiliar gestores na tomada de decisões e apoiar a sociedade com informações acerca dos fenômenos climáticos e de seus efeitos na saúde.

Já o debate do clima em nível institucional, esse encontra-se igualmente incipiente no estado. Contudo, uma iniciativa do parlamentar Júlio Campos (União) sobressai nestes tempos atuais: a criação da Câmara Setorial Temática de Mudanças Climáticas na Assembleia Legislativa para debater ações relativas a esse cenário. Campos defende a união de vários representantes para construção de uma política de combate à crise climática que considere a vocação econômica e as necessidades ambientais de Mato Grosso.

No geral, tais medidas podem ajudar os mato-grossenses a encararem com mais conforto o calor severo e podem servir para construção de políticas públicas de enfrentamento da crise climática de agora e daqui para frente.

Tem quem goste do calor, assim como tem quem goste do frio. Prefiro o calor, mas não essa quentura intensa, sufocante, deste ano em Cuiabá, bem acima dos níveis aos quais estamos acostumados. De qualquer maneira, tal situação nos avisa a todo instante das mudanças climáticas, essas, sim, mais ameaçadoras que o El Niño.

Relativamente aos dois sóis, o melhor é ficarem exclusivamente na música de Nando Reis porque Cuiabá, com somente um astro rei, já tem calor ‘pra catiça’.

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