Cuiabá, 18 de fevereiro de 2025
Caro Ivens,
Desde que comecei a ler o primeiro volume da trilogia “Além Tordesilhas” no final do segundo semestre de 2024, tenho pensado muito em você.
Como lamento não ter desfrutado mais de seu sorriso rasgado, sua alegria e sabedoria! Apesar de encontrá-lo com alguma frequência nos eventos em Cuiabá e graças à proximidade com nossa amiga em comum (Maria Teresa**), confesso que me sentia um pouco tímida na sua presença.
Médico, poeta, escritor profícuo, você sempre me confundiu com tantas habilidades. Acho que cheguei até a lhe perguntar uma vez a que horas você escrevia já que trabalhava como médico durante o dia. Se não me falha a memória, sua resposta foi: à noite.
No ano passado trabalhei no levantamento de dados sobre sua carreira como médico, a pedido de Maria Teresa. Fiquei ainda mais espantada. Que bela carreira você teve como clínico, gastroenterologista e infectologista, e professor dos cursos de medicina da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e da Universidade de Cuiabá (Unic)! Sua atuação como um dos pioneiros da área de Infectologia do Hospital Universitário Júlio Muller (HUJM), na primeira metade dos anos 1980, e como integrante do núcleo inicial de Doenças Infeccionas Parasitárias (DIP), fez como que se tornasse referência, não só em Mato Grosso. E o que dizer de seu trabalho junto ao Programa de Atenção aos Pacientes de HIV, no centro de saúde do Estado?
Mas, talvez, o traço de sua personalidade que mais me encantou foi a forma sempre humana e empática com que você tratou seus pacientes, colegas e alunos. Sim, você também foi poeta nas relações humanas no dia a dia, por mais difícil que fosse a realidade da saúde pública em Mato Grosso. E tudo isso – mais o amor à literatura, às artes em geral e à sua Cuiabá natal – serviu de combustível para o ofício de escritor, que o conduziu à Academia Mato-grossense de Letras e, principalmente o tornou uma referência para leitores de todas as idades.
Conheci o Ivens poeta por meio dos poemas de “Kivaverá” (Entrelinhas, 2011). Adorei. E olha que não sou muito chegada à poesia. Depois li “A mamãe das cavernas e a mamãe loba” (Entrelinhas, 2012). Achava linda a forma como você se deliciava com os encontros com seus leitores jovens em eventos de literatura realizados numa escola de Cuiabá.
Quando soube que estava escrevendo um romance histórico sobre os tempos que antecederam a fundação de Cuiabá fiquei bastante curiosa. Em 27 de setembro de 2024, a trilogia foi lançada no Sesc Arsenal. Mas você não estava lá. Ou melhor, fisicamente você não estava presente, mas todos que tiveram o prazer de desfrutar de sua amizade se lembraram de você. Como se esquecer da esfuziante noite de autógrafos de ‘Kivaverá”, que reuniu aproximadamente 500 pessoas sob a frondosa mangueira do jardim do Sesc Arsenal?
Você faz falta, Ivens!
Trouxe a caixa com os três livros da trilogia para casa, lindamente ilustrada por Léo Davi, como se fosse um tesouro e me lancei imediatamente à leitura de “Além Tordesilhas”. Outubro e novembro foram meses bem movimentados, mas mesmo assim terminei de ler a obra completa antes de dezembro.
Foi muito gostoso ter a companhia do jovem Tote e seus companheiros de bandeira*** antes de dormir. Mergulhei com força nas aventuras e nas viagens acidentadas em rios cheios de pedras, correntezas e quedas d’água, entre São Paulo do Campo de Piratininga e o desconhecido Mato Grosso, num tempo (século XVIII) em que portugueses e espanhóis lutavam pelo domínio das terras brasileiras. No meio dessa guerra, havia indígenas, ora aliados dos portugueses, ora adversários, lutando por suas terras e sua cultura, e negros escravos e libertos.
De onde você tirou tanta informação, Ivens? Como eu gostaria de poder conversar com você e tecer comentários sobre a sua prosa ao final de cada capítulo. Li o Livro 1 (Tietê) quase de um fôlego só, acompanhando o início da Bandeira liderada por Manoel Bicudo (pai do protagonista Tote) e seu companheiro Bartolomeu Bueno (pai de Batico, amigo de Tote). É incrível que tantos personagens tenham sobrevivido a tal quantidade de infortúnios: ataques de mosquitos, cobras e outros animais; chuvas torrenciais, o calor escaldante do Pantanal e sobretudo as armadilhas dos rios, ora serenos e de mata fechada, ora agitados e encachoeirados.
Paralelamente às aventuras da viagem, acompanhei ao longo dos Livros 2 (Xarayes) e o 3 (Ouro e mel) o crescimento de Tote. Ele é personagem ativo e também testemunha de um tempo que marcou o surgimento de Mato Grosso enquanto parte integrante de uma nação que vinha sendo construída por homens brancos corajosos, ávidos por riquezas, extremamente duros consigo mesmo e com os demais, donos da verdade e de uma superioridade forjada na cor da pele, na tradição da Igreja Católica (que considerava inferiores os não batizados) e na posição social de seus ancestrais, os colonizadores europeus.
Confesso que houve noites em que foi difícil pegar no sono depois de tanto susto, mas senti um misto de alívio e tristeza quando li a última linha do Livro 3. Tanto é que me lancei, meio doida que sou, à missão de reler o Livro 1 para me recordar de como toda essa história começou. Mas aí vieram as festas de fim de ano, uma viagem, uma súbita paixão por “Cem anos de solidão” (motivada pela série recém-lançada) e acabei deixando “Além Tordesilhas” de lado. Mas não desisti.
Não pretendia me alongar nesta missiva, apenas queria registrar meu apreço pela obra e minha crescente admiração por seu trabalho como escritor, Ivens. Você nos deixou cedo demais e nos faz lembrar que nunca devemos deixar para depois as oportunidades de uma boa conversa. Hoje, só me resta agradecer pelas obras que você nos legou, que certamente refletem boa parte de sua generosidade, conhecimento, fraternidade e amor pela vida.
Muito obrigada e até à vista.
* Ivens Cuiabano Scaff lutava contra um câncer de fígado e morreu em um hospital de Brasília (DF), na madrugada de 21 de fevereiro de 2024, após complicações em uma cirurgia.
**A editora Maria Teresa Carrión Carracedo, da Entrelinhas Editora, que publicou a maioria das obras de Ivens Cuiabano Scaff.
*** Entradas e bandeiras foram expedições realizadas em direção ao interior do Brasil, no século XVIII, com objetivo de capturar indígenas para o trabalho escravo e encontrar metais preciosos. As entradas eram financiadas pela Coroa Portuguesa e tiveram o litoral como ponto de partida, enquanto as bandeiras foram expedições particulares que saíram de São Paulo. (fonte: https://brasilescola.uol.com.br/historiab/entradas-bandeiras.htm)
**** Martha Baptista é jornalista e escritora
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