COLUNA

Francisca Medeiros

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Do romantismo e bom humor ao cansaço dos caminhoneiros nas estradas

Foto: Reprodução

Era uma profissão de pai para filho e já não é mais assim. O instrumento de trabalho, o caminhão, traduzia uma certa liberdade de escolha até da forma de se expressar. Naturalmente, a economia mudou e o mercado de trabalho dos motoristas de caminhão, também. Boa parte da movimentação de cargas está hoje na mão das empresas de logística com grandes frotas padronizadas. E não há mais espaço, claro, para as frases de para-choque que davam dicas das preferências de quem dirigia.

O abandono dessas frases que tanto chamavam a atenção começou com mudanças na legislação de trânsito. A partir de 1996 uma resolução do Denatran definiu dimensões e pintura padrão do para-choque. A partir daí já não dava para ter textos longos do tipo “A fortuna faz amigos, mas a desgraça mostra se eles existem de fato”. Ou “Se já fui pobre, não me lembro; se já fui rico, me roubaram”.

Nos anos 2000 vieram as exigências dos adesivos reflexivos, uma questão de segurança no trânsito. Aí praticamente acabou o espaço para esta forma de comunicação popular, que fala de vivências, estado de espírito e crenças.

Com a modernização dos caminhões, com baús ou carrocerias de aço, também começou a virar raridade uma arte bem característica das estradas.Trata-se da filetagem, uma técnica de pintura de origem ibérica, que floresceu na Argentina, chegou ao Brasil nos anos 1950 e virou febre a partir da década de 1980. São desenhos abstratos, espirais simétricas, arabescos de traços finos, precisos e de cores vibrantes que decoravam as carrocerias em madeira dos caminhões antigos, as carroças e as charretes.

Além da decoração das carrocerias, as letras das frases de para-choque eram caprichosamente desenhadas por pintores que dominavam a filetagem e, sem escolas ou mestres, mantinham as mesmas características de norte a sul do país. Cada caminhão ganhava, assim, um pouco de personalidade, uma espécie de tatuagem.

De forma geral, as frases se dividiam em motivacionais – “Quem ama as rosas suporta os espinhos” –, religiosas – “Com fé e estrada vou longe” -, românticas – “Viajo porque gosto, volto porque te amo” –, engraçadas – “Veículo monitorado por vizinhos fofoqueiros” -, de crítica social – “Quando rico mata o pobre, o defunto vai preso.” O machismo também rolava solto: “Em mulher e caminhão, só o dono põe a mão”.

Hoje, palavras ou frases curtíssimas aparecem nos lameiros ou parabarros dos caminhões, aqueles acessórios na parte traseira feitos de borracha que protegem contra o lançamento de detritos, lama e água. Alguns exemplos recentes que anotei: “Valeu, pai”, “Deus é mais”, “Vai na fé” e “Gratidão”.

As mudanças no modelo de negócios do transporte são profundas e mexem mais do que na forma de expressão dos caminhoneiros. A categoria está envelhecida e muitos não veem a hora de parar, não querem mais o estresse das estradas malconservadas, da insegurança e do pouco dinheiro na conta.

A estimativa é que 30% dos motoristas de caminhão deverão se aposentar até 2026. E com um salário médio de admissão na carreira em torno R$ 2.500, não há filas de jovens candidatos a sucedê-los.

Uma pesquisa encomendada pela Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA) e apresentada, em agosto de 2024, em uma audiência na Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados mostrou que a idade média destes trabalhadores é de 46 anos e já têm, também em média, 17 anos de profissão.

A maioria (65%) dirige entre 9 e 12 horas por dia e, um dado alarmante, 25% permanecem na função mais de 13 horas diárias. Metade dos profissionais não tira férias todos os anos e 46% planejam deixar a profissão. A renda média fica em torno de R$ 39,50 por hora.

Eles ficam cerca de 17 dias longe de casa por mês e um a cada cinco afirmou que nunca realiza check-up de saúde; fumantes são 35% e um quarto admitiu ter usado estimulante (‘rebite’) pelo menos uma vez.

Sobre a percepção do cumprimento da legislação, 38% disseram que a lei da estadia nunca é cumprida e para 31% é cumprida raramente. Esta lei determina que seja pago ao caminhoneiro pelo tempo de espera para carregar e descarregar superior a cinco horas.

A infraestrutura de atendimento dos caminhoneiros nas estradas também é insuficiente. Em toda a malha federal brasileira, existem 155 pontos de parada e descanso, dos quais 108 nas rodovias públicas e 47 nas sob concessão.

São dados que mostram porque estes profissionais não esbanjam otimismo. Em contraponto, eles são mais necessários do que nunca diante da escassez dessa mão de obra. Um estudo da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) estima que, entre 2013 e 2023, diminuiu 1,1 milhão o número de caminhoneiros do Brasil.

O país continua dependente do transporte rodoviário, que movimenta 60% das mercadorias. O vigor do e-commerce e as boas safras agrícolas pedem também motoristas capacitados. O mercado de transporte adota tecnologias como plataformas digitais que conectam empresas, cargas e motoristas, os caminhões vêm com recursos de rastreamento via GPS, telemetria, monitoramento em tempo real e softwares para definir rotas.

Em qualquer cenário, do passado, presente ou futuro, o motorista é a peça chave. E para vencer a resistência das novas gerações com a profissão, é preciso garantias principalmente de mais qualidade de vida, que envolve ter renda adequada e condições de trabalho.

No dia a dia das estradas, as frases de para-choque não foram esquecidas, elas continuam nas conversas entre grupos de caminhoneiros e nas redes sociais. Pedi para um amigo que transporta grãos entre Nova Mutum e Rondonópolis uma frase sobre a profissão e ele enviou na forma de meme: “Caminhoneiro não é mágico, mas vive de truck”. Com certeza ela ficaria bonita em filetagem também.

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