Lixo que interessa

Foto: reprodução
Na balança comercial brasileira consta um item curioso: lixo. No ano passado foram compradas ao menos 44 mil toneladas de resíduos sólidos, segundo o governo federal. É comércio formal de materiais que são usados como insumos pela indústria recicladora, de embalagens de papelão e vidro, e que se transformam em fibras que podem virar até peças de roupas.
Alguns segmentos que são obrigados por lei a manter um conteúdo mínimo reciclado a ser utilizado como insumo têm buscado suprir a demanda no exterior. Quase a totalidade destas matérias-primas, porém, pode ser encontrada aqui mesmo no Brasil, mas a falta de investimentos na reciclagem explica parte do problema.
Os especialistas que estudam a cadeia da reciclagem estimam que há potencial de reaproveitar e transformar 85% dos resíduos sólidos. Nesse quesito, o país tem um desempenho pífio, recicla em torno de 4%. E a competição com o material vindo do exterior complica esse cenário.
Durante a pandemia da covid-19, com os coletores brasileiros impedidos de trabalhar, a taxa de importação de papel e vidro foi zerada e só foi retomada em 2023, quando subiu para 18%, incluindo o plástico.
Como essa taxa ainda é considerada baixa, as importações têm se mantido em patamares elevados. É mais barato comprar lá fora do que reciclar dentro do país, mesmo que aqui haja material em abundância, já que o Brasil é o quarto gerador de lixo no mundo.
Estes resíduos – papel, plástico, vidro e metal – são jogados em aterros sanitários ou são descartados de qualquer jeito no meio ambiente. Um levantamento de 2024, com dados de 2023, mostra que, entre disposição inadequada no solo e queima não autorizada, mais de 41% dos resíduos sólidos urbanos (RSU) gerados no país ainda não têm uma destinação ambientalmente adequada. O resultado é que matéria-prima/riqueza é perdida com riscos ainda de contaminar o meio ambiente.
E vale lembrar que a Política Nacional de Resíduos Sólidos está em vigor há mais de uma década e ela prevê que o fim dos lixões no país deveria ter acontecido em 2024.
Até aqui falamos de negócios formais com a troca comercial de resíduos entre países, operação que é normatizada desde 1992, a partir da Convenção da Basileia. Este tratado proíbe, porém, o envio de lixo doméstico, mesmo aquele que pode ser reciclado.
É interessante conhecer a origem deste marco regulatório, que se trata de um episódio de desrespeito da Itália para com os moradores do vilarejo de Koko, na Nigéria. Em 1988, empresas petrolíferas italianas alugaram, por somente US$ 100 ao mês, um terreno na vila de pescadores e enviaram para lá 8 mil barris de lixo tóxico, sem qualquer tratamento. Houve vazamento, solo e água foram contaminados, pessoas morreram e o vilarejo teve que ser evacuado.
O lixo acabou devolvido à Itália. Houve muita resistência, inclusive com greves, das comunidades onde aportaram os “navios de veneno”. O incidente levou tanto a Itália quanto a Nigéria a criarem leis ambientais mais restritivas e inspirou a Convenção da Basileia, de alcance global, sobre comércio e trânsito de produtos perigosos.
Mas o desrespeito às normas continua, quase sempre protagonizado por países desenvolvidos que querem se livrar de seus dejetos indesejáveis nos territórios de nações pobres. O Quênia, por exemplo, está na mira de empresas europeias que enviam para lá milhares de toneladas de lixo, em geral roupas sintéticas usadas. O Brasil também é alvo dos mercadores de dejeto ilegal proveniente dos EUA e Europa, tanto que, em uma década, o Ibama fez ao menos 106 apreensões.
Este chamado colonialismo tóxico enfrenta a resistência de movimentos que buscam por justiça ambiental e que defendem, além do cumprimento das leis, maior estímulo ao consumo consciente e à reciclagem.
Para estimular a cadeia econômica da reciclagem, o presidente Lula sancionou em janeiro uma lei que proíbe a importação de resíduos sólidos e de rejeitos. Um efeito esperado é a criação de mais cooperativas e associações de catadores, trabalhadores muito afetados pelas importações.
O processo de reciclagem começa com a coleta seletiva. E preocupa saber que menos de 30% das cidades brasileiras já adotam esta separação de materiais na fonte (nas casas ou empresas onde o resíduo é produzido). E mesmo as que implantaram, ainda reciclam pouco. Em Mato Grosso, no ano passado, 83 municípios usavam os lixões para destinar o lixo urbano coletado, conforme levantamento do Ministério Público Estadual (MPE).
A capital Cuiabá, que produz cerca de 800 toneladas de lixo diariamente, não tem projeto de coleta seletiva. Em janeiro deste ano o secretário municipal de Governo, Ananias Filho, se comprometeu com o MPE que o município dará continuidade ao trabalho de um grupo técnico interinstitucional que conduz o processo de implementação da coleta seletiva. Mas ninguém ainda falou sobre como será o projeto ou qual o cronograma para entrar em operação.
A questão é que, mesmo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos e com a recém-criada lei que proíbe as importações, ainda falta engajamento massivo a favor da reciclagem. E isso demanda mudanças individuais e coletivas, tanto nos hábitos das famílias, nas práticas empresariais e nas políticas públicas. Os impactos positivos, porém, podem ser poderosos, com a inclusão dos catadores na economia circular, na saúde das pessoas e no meio ambiente. Razões fortes o bastante para que a reciclagem seja incluída como prioridade em qualquer agenda responsável e progressista do momento.
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