Risco do autoritarismo para o agro
O desprezo pela ciência leva, invariavelmente, a perdas – de tempo, dinheiro, saúde e vidas. Um exemplo que nos chega em capítulos diários vem dos Estados Unidos sob Trump. É a asfixia financeira de universidades para que elas rezem pela cartilha ‘anti-estado’, a demissão massiva de pesquisadores, a desconstrução das agências reguladoras. E, não por acaso, doenças ressurgem e outras persistem. No agro, o afrouxamento do controle sanitário sinaliza para prejuízos que vão além do próprio setor.
No mantra de enxugar o estado, Elon Musk, o bilionário da tecnologia e funcionário especial do governo, já validou a demissão de 6 mil servidores do Departamento de Agricultura (USDA), entre eles cientistas seniores e técnicos superespecializados em sanidade. Especialistas temem que pragas e doenças saiam do controle e ameacem a segurança alimentar americana e o comércio externo.
Uma das maiores encrencas é a dificuldade de controle do surto de gripe aviária, que já levou ao sacrifício de milhões de aves, à escassez e encarecimento da carne de frango e dos ovos e à maior importação. Em vez de reforçar a vigilância, o governo demitiu ou colocou na geladeira milhares de trabalhadores de agências, como o USDA e o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), a agência de saúde pública que cuida das doenças infecciosas.
As unidades responsáveis pela proteção e quarentena vegetal foram atingidas em cheio. Caiu 35% o número de fiscais em portos importantes e é real o risco do ingresso de pragas que trazem riscos que podem começar no campo e seguir até as prateleiras dos supermercados.
Esta opção de não dar ouvidos à ciência lembra um episódio trágico da história da China que reverberou por muito tempo. Era o final dos anos 1950 e o governo, na intenção de melhorar as condições sanitárias, decidiu patrocinar uma caçada aos mosquitos, moscas, ratos e….pardais! No caso das aves, a crença era que elas eram as responsáveis pela baixa produtividade no campo porque comiam os grãos e tiravam comida da boca das pessoas. À época, a China, com 800 milhões de habitantes, enfrentava uma fome severa.
Os tecnocratas que assessoravam o presidente Mao Tsé-Tung calculavam que, a cada milhão de pardais dizimados, sobraria alimento para 60 mil pessoas. Os biólogos alertavam que a medida seria ineficaz porque as aves não comiam só sementes, mas também vermes e insetos e outras consequências negativas poderiam aparecer com o desequilíbrio das populações.
Uma das vozes ignoradas foi do cientista Tso-Hsin Cheng, considerado o pai da ornitologia moderna. Por ordem de Mao, a população, tomada de furor patriótico, foi para o confronto físico com os pardais com a missão de erradicá-los, inclusive com métodos pouco ortodoxos e bastante cruéis.
De forma sincronizada, em um mesmo horário, multidões batiam panelas e gritavam do chão ou de cima de telhados e árvores. O som ensurdecedor assustava as aves que não conseguiam pousar e voavam desorientadas até caírem no solo, mortas de cansaço. Esse inferno sonoro não matava somente os pardais, outras espécies também eram vítimas.
Os ninhos também eram destruídos, os ovos quebrados e os filhotes, mortos. Técnicas mortíferas mais diretas – estilingues e armas de fogo – também foram usadas contra “os animais públicos do capitalismo”, estimuladas por um sistema de recompensa individual proporcional à matança promovida.
Algumas reações, quase anedóticas, foram registradas, como a tentativa de tornarem alguns pardais uma espécie de ‘refugiados políticos’. Isso se deu quando um grupo deles entrou na Embaixada da Polônia e os funcionários barraram a invasão de moradores decididos a chacinar os bichinhos. A turma, então, bateu tambor do lado de fora por dois dias e os pássaros não conseguiram resistir à barulheira.
Com o avanço da campanha pró mortandade, os estudiosos que investigavam o comportamento dos pássaros faziam alertas regulares aos líderes políticos. Mas tudo foi em vão. O resultado foi a morte de um bilhão de aves, a espécie quase foi extinta e…. a produção de arroz e outros grãos também caiu.
O que aconteceu? A ciência explica com o conceito básico de cadeia alimentar. Tso-Hsin Cheng mostrou para Mao dados de autópsias que demonstravam que a dieta preferencial dos pardais eram os insetos, com gosto especial pelos gafanhotos. Sem a presença das aves, a população desses insetos e de lagartas explodiu e as plantações sofreram severos ataques.
Em 1960, enfim, a campanha “Mate um Pardal” foi suspensa e a partir daí foram desenvolvidas ações educativas para restaurar a boa reputação da espécie e de sua importância para o equilíbrio do ecossistema. Para o repovoamento, alguns pássaros chegaram até a ser importados da Rússia.
Trouxe este longo episódio histórico para mostrar que não parece coincidência a gestão errática de Trump na agricultura e na saúde pública. Em comum, mesmo com mais de seis décadas de distância, há o autoritarismo que gosta de flertar com a pseudociência e com a negação da realidade.
Nos Estados Unidos, as campanhas antivacina têm sua parte no aumento das infecções por influenza que já atingiram os maiores níveis em 15 anos. E também no ressurgimento do sarampo, doença que estava erradicada, e que atualmente contabiliza mais de 300 infecções, com duas mortes confirmadas.
Alheio a este cenário preocupante, Trump dá ordens para a retirada de informações sobre identidade de gênero, inclusão e diversidade dos sites e páginas do CDC relacionadas à prevenção do HIV, das Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e da saúde dos jovens. E já demitiu diretores e 2.400 funcionários do centro.
O secretário de Saúde, Robert F. Kennedy Jr., um notório cético da ciência, tenta ligar a vacina contra o sarampo à cegueira e surdez, hipótese que não tem qualquer fundamento científico e é um desserviço à saúde das crianças.
Musk gosta de símbolos e usa a motosserra personalizada, feita de alumínio e bronze, que ganhou do presidente argentino Javier Milei, para se exibir para as câmeras. Quer parecer seguro o suficiente para dizimar a ‘burocracia estatal’. E até agora não deu a mínima para qualquer alerta racional sobre gestão pública ou responsabilidade governamental.
É a arrogância típica dos autoritários de plantão, seja de que ideologia for. A história ensina, porém, que as vítimas nunca são apenas os pardais.
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